Uma das tantas facetas cruéis da nossa sociedade excludente que se aprofunda com a pandemia do novo coronavírus é o capacitismo. A discriminação e opressão às pessoas com deficiência se expressa ao considerá-las inferiores, incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, amar, cuidar, de sentir desejo e de serem desejadas. Isto tem por base uma normatividade opressora, que inviabiliza.
Para entender como essa opressão se intensifica nesse momento e como lutar pela inclusão e garantia de direitos às pessoas com deficiência, o ANDES-SN conversou a docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marinalva Oliveira.
“Os discursos e práticas que envolvem o capacitismo têm a tendência de achar que a “não deficiência” é o “normal” e que pessoas com deficiência precisam se virar para se encaixar na norma. Hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade e capacidade funcional”, explica a docente.
Marinalva coordena o Laboratório de Inclusão, Mediação simbólica, desenvolvimento e aprendizagem (LIMDA) da UFRJ. Tem orientações em dissertações de mestrado na área de desenvolvimento e aprendizagem de crianças com síndrome de Down e formação de professores para a educação inclusiva de pessoas com deficiência. Atua com temas como Desenvolvimento e construção de conhecimento em crianças com síndrome de Down, com suporte na Teoria Histórico Cultural de Vygotsky, além de trabalhos concentrados nas politicas públicas de inclusão para pessoas com deficiência intelectual.
ANDES-SN: Como o capacitismo se expressa em nossa sociedade?
Marinalva Oliveira: A nossa sociedade é baseada numa cultura de maximização da produção e do lucro. Nessa lógica, as pessoas com deficiência constituem-se em sinônimo de ineficiência, improdutividade, consideradas incapazes de contribuir nessa sociedade, que tem suas relações definidas pela produção e pelo lucro, afastando aqueles que não atendam às suas demandas - os improdutivos. Isso acarreta práticas capacitistas, que têm como consequência o estabelecimento de limites. Esses limites impossibilitaram, por anos, que pessoas com deficiência tivessem condições de lutar, em igualdade, por direitos na sociedade.
As barreiras impostas às pessoas com deficiência para acesso à Educação Superior, por exemplo, têm relação com a imposição de uma sociedade que os elimina e que se fundamenta na cultura do capacitismo, na qual pessoas com deficiência são vítimas, sendo perversa a concepção de igualdade de oportunidades para todos, que acaba por responsabilizar a pessoa pelo seu sucesso ou fracasso na sociedade. Isso tem como consequência, no processo de inclusão de um modo geral e, mais especificamente no caso das pessoas com deficiência, a prática do princípio da “normalização”.
Ou seja, quando o reduzido número de pessoas que chegam ao Ensino Superior tem a obrigatoriedade de se adaptar às metodologias utilizadas, que em sua maioria se baseiam na concepção meritocrática e normalizadora, através da qual a pessoa é percebida por sua capacidade individual, intelectual e sua condição de produtividade.
ANDES-SN: Você acha que o capacitismo se aprofunda nesse momento, em relação às medidas adotadas para conter a pandemia do novo coronavírus?
Marinalva Oliveira: O capacitismo se aprofunda na atual conjuntura, pois sequer há medidas capazes de proteger a pessoa com deficiência. Ou seja, estão mais do que nunca invisíveis nas medidas restritivas como isolamento e distanciamento sociais, além da comunicação como medida de informação, não ser acessível.
É importante destacar que a deficiência por si só não coloca a pessoa no grupo de risco. No entanto, as comorbidades a coloca. Diabetes, hipertensão, problemas cardíacos são doenças mais presentes em algumas pessoas por conta da deficiência, além da baixa imunidade que acompanha algumas pessoas com alterações genéticas. As pessoas com síndrome de Down, por exemplo, possuem problemas respiratórios, baixa imunidade, hipotonia, que dificulta no processo respiratório. A Covid 19 ataca diretamente o sistema respiratório, assim estas pessoas estão no grupo de risco.
Além disso, por falta de políticas públicas que propiciem a autonomia, muitas pessoas com deficiência não são independentes e precisam de apoio de cuidadores, geralmente as mães. O auto-isolamento e o distanciamento social podem ser impossíveis para aquelas que requerem apoio para comer, vestir-se ou banhar-se.
Outro ponto a ser considerado no aprofundamento do capacitismo em tempos de pandemia do coronavírus é a comunicação que vem sendo feita, muitas vezes excluindo o acesso à essa parcela da população.
Neste momento de isolamento obrigatório para quem pode, as redes sociais têm sido uma das poucas formas de comunicação. Por isso, é mais do que imprescindível possibilitar acessibilidade comunicacional a todos e todas. Se já estamos isolados e isoladas no contato humano, não vamos ampliar o isolamento das pessoas com deficiência, que já são cotidianamente excluídas.
Inclusive as campanhas de proteção e ou prevenção veiculadas na grande mídia e em vários canais de comunicação não tem acessibilidade comunicacional (interpretes de Libras, legendas e áudio descrição). As pessoas cegas precisam de materiais com áudio descrição ou em braile, as pessoas surdas, de materiais visuais. Já as pessoas com deficiência intelectual precisam de uma comunicação com linguagem simples.
ANDES-SN: Quais são as ações imediatas que você acha que devem ser tomadas pelos governos para preservar as pessoas com deficiência nesse momento de pandemia?
Marinalva Oliveira: É fundamental termos medidas para proteger as pessoas com deficiência e seus familiares. O Brasil possui cerca de 22% da sua população com algum tipo de deficiência. As deficiências são classificadas como leve, moderada ou severa e os riscos e os cuidados variam de acordo com o grau de dependência. Além de seguir as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e demais autoridades sanitárias, em se tratando das pessoas com deficiência é importante os governos cumprirem o que consta na LBI (Lei 13.146/2015, art. 10): "Parágrafo único. Em situações de risco, emergência ou estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança."
Portanto, cabe ao Estado cumprir seu dever em relação à proteção das pessoas com deficiência, dada a situação de duplo risco, saúde e social, a que estão sujeitas com a pandemia. Se não forem adotadas medidas urgentes, será impossível conter o avanço da Covid-19 entre as pessoas com deficiência, o que levará a centenas de infectados, podendo acarretar complicações da saúde destas pessoas, bem como um grande número de mortes de pessoas com deficiência e de seus familiares (cuidadores).
Precisamos ter campanhas de esclarecimento com comunicação acessível e também ações por parte do poder público. Os cuidadores podem ser infectados pela Covid-19, por isso é importante ter outra pessoa já treinada para assumir o cuidado da pessoa com deficiência. Os intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) devem ter cuidado redobrado com a higiene das mãos por tocarem o rosto durante a comunicação. Pessoas com deficiência que utilizam cadeiras de roda, muletas, bengalas e andadores terão que fazer a limpeza adequada. Ter atenção redobrada por parte das pessoas responsáveis às pessoas que não conseguem dizer o que estão sentindo, por exemplo, quem tem deficiência intelectual tem dificuldade de relatar mal-estar e outros sintomas.
Outra questão importante é divulgar amplamente que as pessoas com deficiência têm direito ao atendimento preferencial, conforme assegura a Lei Brasileira de Inclusão (LBI): Seção Única Art.9º - A pessoa com deficiência tem direito a receber atendimento prioritário, sobretudo com a finalidade de: I. proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; II. atendimento em todas as instituições e serviços de atendimento ao público.
ANDES-SN: Assistimos ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, dizer que as escolas vão voltar a funcionar aos poucos e que as crianças com deficiências serão as primeiras a retornarem às aulas. O que tem a dizer sobre isso?
Marinalva Oliveira: Crivella deveria cumprir o que consta na LBI, que em seu artigo 10 declara que, em estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança. Portanto, cabe ao Estado cumprir seu dever em relação à proteção das pessoas com deficiência. Muitas dessas crianças estão no grupo de risco do novo coronavírus, pois apresentam baixa imunidade, problemas cardíacos, outros fatores comprometedores e não podem servir de cobaias dessa prefeitura.
A declaração de Crivella é irresponsável e criminosa, indo na contramão das orientações da OMS e da LBI. Acho que isso envolve, ainda, a discussão sobre direitos humanos, a proposta do prefeito Crivella é de expor justamente as crianças mais vulneráveis a retornarem à sala de aula. É uma medida eugeunista, neonazista, criminosa.
*As opiniões contidas nesta entrevista são de inteira responsabilidade dos entrevistados e não necessariamente correspondem ao posicionamento político deste Sindicato
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