Além de lugares de expressão da fé, várias igrejas, centros e outros espaços religiosos têm também papel fundamental, em muitas comunidades, na concentração de ações de solidariedade voltadas para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Porém, com a pandemia do novo coronavírus, esses locais tiveram que fechar as portas, para diminuir a aglomeração de pessoas.
No entanto, diversos líderes religiosos no país se negaram obedecer as regras de isolamento, postura que gerou muitas críticas. Outra questão que também tem dificultado o combate à Covid-19 é o fundamentalismo religioso, que dissemina, entre os fiéis, a descrença no conhecimento científico e, consequentemente, nas orientações dos órgãos de saúde pública para evitar a contaminação.
Para discutir essas questões, o ANDES-SN conversou com o pastor evangélico Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho de Niterói (RJ). Vieira é professor, cientista social, historiador, teólogo, pastor e ator. Constrói o canal Esperançar. Militante de direitos humanos desde a adolescência, ele atua junto a diversos movimentos sociais no Rio de Janeiro e foi vereador pelo PSol na cidade de Niterói, entre 2012 e 2016. Confira!
ANDES-SN: Como o extremismo religioso impacta nas medidas de combate ao novo coronavírus?
Pastor Henrique Vieira: O extremismo religioso é pautado num fanatismo que inviabiliza o diálogo, a escuta, a convivência fraterna. Por tanto, pressupõe uma verdade absoluta fechada em si mesma, que não consegue lidar com a diversidade, por um lado e com o acúmulo do conhecimento humano produzido ao longo da história, por outro.
Estou dizendo isso, porque o extremismo religioso acaba também inviabilizando o diálogo com o campo científico e com aquilo que vem sendo colocado como melhores medidas para combater o novo coronavírus, diminuir o ritmo do contágio para dar tempo de estruturar o sistema de saúde, para salvar a vida de muitas pessoas.
Como o extremismo religioso é fechado em si mesmo e não dialoga com a pluralidade de saberes, nesse contexto, ele também nega o campo científico e, dessa forma, tende a minimizar o problema e a inviabilizar, ou dificultar, que medidas sejam tomadas para realmente conter o avanço do coronavírus na sociedade.
Então, é um impacto negativo à medida que desconsidera o saber científico, minimiza o tamanho do problema e gera a leitura, em parte da sociedade, de que o isolamento social não é importante. Tem, na prática, um impacto negativo, que pode influenciar o comportamento das pessoas, aumentar o ritmo de contágio e o número de mortes.
ANDES-SN: Como você analisa os atos de solidariedade encabeçados pela sociedade civil, entidades sindicais e sociais?
Pastor Henrique Vieira: Os atos de solidariedade são fundamentais. Primeiro, para amenizar o sofrimento das pessoas, socorrer quem precisa de ajuda. Aquela frase é tão simples, mas tão correta: "quem tem fome, tem pressa". A precariedade é tão grande que a urgência é muito necessária. Essas redes de solidariedade se tornam essenciais para manter a vida de milhares de pessoas. A solidariedade salva, objetivamente, ainda mais num momento como este.
E tem um segundo sentido que é para além de amenizar o sofrimento, na urgência da fome, da precariedade. Acho que a solidariedade é um valor que aponta para um outro mundo. Um valor que denuncia essa lógica de competição, de rivalidade, de individualismo, de meritocracia da sociedade capitalista. A lógica do capitalismo é a lógica da não solidariedade. Cada um por si, e todos por ninguém. Todos contra todos e quem puder se salva. E percebemos que essa lógica é insustentável, tanto do ponto de vista humano quanto do ponto de vista ecológico. Então, a solidariedade, além de amenizar o sofrimento, ela nos sinaliza um outro modelo de sociedade, que possa romper com essa lógica do capitalismo individualista, meritocrático, privatizante do sentido da vida.
Acho que essa rede de solidariedade pode ser a semente de um outro modelo de economia, de produção, de consumo, de relação com o tempo, com o trabalho, com a natureza. Se pegarmos esse valor e, realmente, aplicarmos à transversalidade da vida a cooperação e comunhão, lógicas mais comunitárias de produção da vida.
Então, eu acho que a solidariedade também tem esse valor. Além de amenizar o sofrimento, socorrer quem precisa e aliviar a dor, apontar um outro caminho civilizacional que não seja mais pautado por esse individualismo que torna a vida amarga.
ANDES-SN: A postura do presidente Bolsonaro e de líderes religiosos em manter as igrejas abertas, inclusive para missas e cultos, em tempos de quarentena é bastante criticada. Qual a sua opinião?
Pastor Henrique Vieira: Minha opinião é que essa é uma postura irresponsável, inconsequente, insensível, desumana. Uma postura que coloca em risco a vida de muitas pessoas. Parece até que muitas igrejas, inclusive por força judicial, estão se mantendo na maior parte do tempo, fechadas. Eu não tenho informação sobre como está nesse momento, mas eu acompanhei e vi que muitas lideranças se quer queriam fechar as suas igrejas.
O que está por trás disso é uma experiência religiosa fanática, inconsequente, que não cuida da vida. E, também, tem um outro fator que é econômico. Igrejas cheias, dentro dessa lógica, de determinadas lideranças, significa arrecadação alta. Então, em certo sentido, estão se preocupando mais com o bolso do que com a vida.
Cabe dizer, e é importante dizer isso, que eu sinto saudade do encontro presencial da minha igreja. Que essa dimensão comunitária do culto, da comunhão, no espaço da igreja, é uma dimensão muito importante para mim e para milhões de brasileiros.
Não se trata de dizer que isso é fácil, que não se encontrar na igreja é tranquilo. Não é. Tem dor, sentimos falta, pois faz parte da nossa tradição de fé cantarmos juntos, orarmos juntos, lermos a bíblia e orarmos, presencialmente, uns pelos outros. Há uma dimensão comunitária presencial que é muito importante nas nossas vidas, só que, o isolamento social é uma necessidade para preservar vidas. Embora a gente sinta saudade e faça falta na nossa vida, é consequente, consciente e necessário e é, na verdade, uma atitude de amor, que nesse momento, os encontros coletivos nas igrejas não aconteçam.
E eu acho que isso é fruto de uma espiritualidade que compreende a vida, que coloca o amor como centro e que procura cuidar das pessoas - da gente e do próximo. Sentimos saudades, pois o valor comunitário é muito importante para nós. Só que o isolamento social é uma necessidade e nesse momento um ato de amor, de cuidado com a gente e com o próximo.
ANDES-SN: Qual seria a postura aconselhável de igrejas e de líderes religiosos neste momento, em que milhares de pessoas estão infectadas e outras tantas desempregadas e desabrigadas?
Pastor Henrique Vieira: Aquelas igrejas que têm acesso às ferramentas de internet podem usar as redes sociais para produzir conteúdo, estudo bíblico, compartilhar palavras de consolo e esperança. Inclusive o próprio whatsapp é um mecanismo, eu acho que dos mais populares em termos de redes, que pode ser muito utilizado para compartilhar devocionais, estudos bíblicos, palavras de consolo, palavras de esperança. Acho que a igreja tem essa responsabilidade, de produzir consolo, de apontar caminhos usando os meios mais responsáveis nesse momento. Então, por que não usar as redes sociais, as múltiplas possibilidades disponíveis para levar às pessoas uma palavra de acalanto, de consolo, de cuidado, de carinho e de esperança?
Por outro lado, não menos importante em hipótese alguma, as igrejas devem participar, de maneira responsável e com logística responsável, de campanhas de solidariedade, de arrecadação e distribuição de alimentos. Sempre zelando pela higienização, pela forma correta de fazer, colocando o menor número de pessoas em deslocamento, mas participando ativamente de campanhas de solidariedade para amenizar o sofrimento, para distribuir alimentos, para impedir que pessoas passem fome. Inclusive, acho que essa é uma tarefa ética da igreja, a partir da nossa fé em Jesus.
Consolo, esperança e solidariedade, do ponto de vista objetivo, acho que é um caminho mais responsável para igrejas e lideranças religiosas. É o que temos procurado fazer com humildade, com coragem e com amor.
*As opiniões contidas nesta entrevista são de inteira responsabilidade dos entrevistados e não necessariamente correspondem ao posicionamento político deste Sindicato
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