Nota Técnica de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade de Brasília (UnB) 25 de março 2020
PANORAMA DA COVID-19
Afrânio Kritski - FM -UFRJ;
Domingos Alves - FMRP-USP;
Guilherme Werneck - Iesc - UFRJ
Ivan Zimmermann, UnB;
Mauro Sanchez - UnB
Rafael Galliez - FM - UFRJ;
Roberto Medronho - FM - UFRJ.
Estamos vivendo uma crise sem precedentes na saúde pública mundial. As medidas restritivas adotadas em diversos países e baseadas em estudos científicos vêm dando resultados concretos. ACREDITEM NA CIÊNCIA! Ela pode nos ajudar a reduzir o sofrimento e a salvar vidas. PERMANEÇAM EM CASA.
Em cerca de três meses desde o início da epidemia de COVID-19 na China, no final de 2019, já ocorreram mais de 400 mil casos no mundo e 19 mil mortes, e estima-se que muitos casos e óbitos ainda possam ocorrer nos próximos meses.
No Brasil, já foram confirmados mais de 2.200 casos e 47 óbitos por COVID-19 apenas cerca de duas semanas após a confirmação da transmissão comunitária da infecção nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Estudo realizado pela London School of Hygiene & Tropical Medicine, na Inglaterra, estima que os casos notificados no Brasil representam aproximadamente apenas 11% do total. Assim, estamos vendo apenas a ponta de um grande iceberg. As mais recentes análises da evolução da epidemia permitem prever uma situação gravíssima à medida que a transmissão sustentada se estabeleça definitivamente em todas as capitais e nos municípios do interior do país, atingindo as populações mais vulneráveis.
Análises do especialista em modelagem computacional Domingos Alves, líder do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), que vem trabalhando com pesquisadores de diversas universidades no Brasil, indicam que a COVID-19 avançará em certas partes do Brasil de uma forma mais rápida do que a maioria das previsões indica.
Simulações do estudo apontam que nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília o vírus pode estar se propagando muito mais rapidamente do que se projetava há cerca de 20 dias. Essas três cidades atuariam como eixos de disseminação da infecção para outras partes do país. A situação atual sugere que estamos à frente de um cenário com gravidade sem precedentes na história recente do país.
Os pesquisadores chamam a atenção para o fato de Brasília, apesar de ter um número menor de casos em relação a São Paulo até o momento (figura 1a), apresenta um risco de infecção maior (figura 1b), quando se leva em consideração o tamanho da população que pode ser infectada, e não apenas a contagem de casos.
Figura 1: (a) acima: casos confirmados até o 20/3 em cada cidade. (b) abaixo: casos por 100 mil habitantes.
Considerando não apenas o número de casos confirmados de COVID-19 mas o risco para a população de cada cidade, as projeções indicam que o número de casos acumulados em Brasília poderá, nas próximas semanas, superar o registrado em São Paulo. Na figura 2, estão descritas essas projeções para cada município no decorrer de dez dias, usando um modelo simples de crescimento exponencial.
Figura 2: Projeção dos casos de COVID-19 para Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, usando um modelo de crescimento exponencial.
A consequência da evolução da epidemia em diferentes cidades pode ser dramática. De acordo com os registros oficiais do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), por exemplo, o Distrito Federal possui um total de 6.705 leitos hospitalares (3.959 públicos e 2.746 privados) e 1.668 leitos de cuidados intermediários e intensivos (383 públicos e 1.285 privados). Em um cenário mais grave, onde essa projeção de casos se confirme no Distrito Federal, estima-se que possam ser necessários muito mais leitos hospitalares e leitos de cuidados intensivos para o atendimento de casos confirmados da doença.
Essas estimativas são consistentes com o percentual observado na Itália, conforme a Nota Técnica 2 – emitida pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois) em 17/3/2020 – e só reforçam a necessidade de medidas de supressão da transmissão da COVID-19. Assim, medidas amplas de isolamento, quarentena e restrição do contato social são fundamentais para que possa ocorrer uma desaceleração da propagação da epidemia. Essas projeções se baseiam nos dados disponíveis até o momento, e que, portanto, podem ser revisados à medida que novas informações se tornem disponíveis. No intuito de traçar projeções mais confiáveis e tomar as medidas mais apropriadas no combate à COVID-19, é estratégico para os gestores locais e para a população conhecer, em nível municipal e estadual, a progressão do número de casos confirmados e suspeitos, óbitos e pessoas que se recuperaram. Nesse sentido, é preocupante a decisão do governo federal de não registrar mais os casos suspeitos após a transmissão comunitária ter sido declarada em todo o país, tornando ainda mais difícil a avaliação da progressão da epidemia e dos efeitos das ações de controle implementadas. Esse cenário mostra, portanto, que é essencial o uso de plataformas que atualizem, de forma acurada e em tempo real, essa previsão. Informação e transparência são cruciais para conter a COVID-19 e salvar vidas. É a medida adotada por todos os países nesse momento de pandemia.
O quadro apresentado reforça a tese de que, em um país com o tamanho continental e as desigualdades socioeconômicas do Brasil, a análise precisa ser realizada em nível municipal em articulação com o nível estadual. Deve, portanto, oferecer aos gestores e à população um retrato preciso da propagação da epidemia, levando em consideração dados de mobilidade das pessoas, informações demográficas e socioeconômicas, capacidade instalada dos serviços de saúde, equipamentos de proteção adequados aos profissionais de saúde, kits diagnósticos rápidos e leitos hospitalares e de terapia intensiva necessários para a atenção ao paciente grave, no intuito de obtermos de modo mais rápido o achatamento da curva de transmissão e menor mortalidade.
Com os pesquisadores desse grupo da USP em Ribeirão Preto, Alves desenvolveu um portal para avaliar a COVID-19 no Brasil em tempo real e fazer análises da resposta a medidas de contenção e multiplicação de casos por município (https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/). O grupo reúne diversos pesquisadores de maneira independente e conta ainda com a colaboração da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de centros de pesquisa em Portugal e na Espanha.
Na Espanha, um grupo de pesquisadores liderado pelos professores Alex Arenas (Universitat Rovira i Virgili) e Jesús Gómez-Gardeñes (Universidad de Zaragoza), e que conta ainda com a participação de Wesley Cota e do professor Silvio C. Ferreira (ambos da Universidade Federal de Viçosa), desenvolveu um mapa de risco estimado da epidemia no Brasil, em nível de município, baseado em um modelo para a disseminação de epidemias com dados de mobilidade pendular (recorrente) entre municípios da população ativa no país (Figura 3). Esses dados foram compilados a partir do Censo Demográfico do Brasil de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Figura 3: A figura mostra o mapa de risco de COVID-19 (https://covid-19-risk.github.io/map/brazil/pt/) na região Sudeste do Brasil. Um indicador de risco de 0,1% em um município indica que se estima que 1 em cada 1 mil indivíduos na população desse município possa estar infectado (assintomático ou sintomático)
Um relatório do grupo de pesquisa da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getulio Vargas (EMAp/FGV) em conjunto com o Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (PROCC/Fiocruz) reforça essa percepção. O trabalho identifica que a alta conectividade aérea de São Paulo e Rio de Janeiro coloca essas cidades como polos de disseminação da doença para outros centros urbanos, reforçando a ideia de que ações imediatas de restrição da mobilidade da população nessas cidades podem ter impacto na difusão da epidemia para outras partes do país. Segundo esse estudo, os centros urbanos das regiões Sul e Sudeste, além das capitais Recife e Salvador, têm grande probabilidade de acumular casos graves em curto prazo. Em um segundo momento, prevê-se a disseminação da COVID-19 para a região litorânea entre Porto Alegre e Salvador e para várias microrregiões da Paraíba, Ceará, Pernambuco, Cuiabá,Goiânia e Foz do Iguaçu. Considerando os diferentes graus de vulnerabilidade social, as microrregiões que possuem alto risco de epidemia a curto prazo e alta vulnerabilidade social para ações imediatas se concentram no estado do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia. (Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Saúde Pública do PROCC/Fiocruz e EMAp/FGV - 2º relatório - 23 março 2020 - Estimativa de risco de espalhamento da COVID-19 no Brasil e avaliação da vulnerabilidade socioeconômica nas microrregiões brasileiras).
Análises preliminares realizadas por pesquisadores da Faculdade de Medicina da UFRJ e da Fiocruz Bahia estimam que a velocidade de transmissão do vírus no estado do Rio de Janeiro pode ser bem maior que a de outros países.
O panorama apresentado por esses diferentes grupos reforça a percepção de que, a despeito de alguns governadores no Brasil estarem tomando medidas mais ousadas, já deveríamos ter implantado a estratégia de contenção e supressão em vários municípios, ações implementadas pelos países acometidos pela COVID-19. Pois, conforme as experiências relatadas em regiões da China e da Itália, a efetividade dessas medidas é maior quando iniciadas precocemente, quando o número de casos suspeitos e confirmados está baixo.
A importância das estratégias de combate à COVID-19 foi publicada pelo grupo de pesquisadores do Imperial College de Londres, em 16 de março de 2020 (DOI: https://doi.org/10.25561/77482). Nesse artigo, os autores analisaram, por meio de modelagem, o impacto de medidas de supressão da epidemia nos EUA e na Inglaterra. Tornou-se consenso que duas estratégias fundamentais são possíveis:
a) a mitigação, que se concentra em isolar casos suspeitos e familiares em nível domiciliar, no intuito de retardar, mas não necessariamente impedir a propagação da epidemia - reduzindo o pico de demanda de assistência médica e protegendo aqueles com maior risco de doenças graves contra infecções;
b) a supressão, que visa reverter o crescimento da epidemia, reduzindo o número de casos para níveis mais baixos. Caracteriza-se pelas medidas propostas na mitigação combinadas com distanciamento social de toda a população, isolamento dos casos em casa e quarentena dos membros de suas famílias e fechamento de escolas, universidades e comércio.
Nas políticas de mitigação, que combina o isolamento domiciliar de casos suspeitos, quarentena domiciliar de pessoas que moram na mesma casa que casos suspeitos e distanciamento social de idosos e outras pessoas com maior risco de doença grave, é necessário prover diagnóstico para todos os suspeitos de modo rápido e eficiente. Tais medidas podem reduzir o pico da demanda de assistência médica em 2/3 e o número de mortes pela metade. Entretanto, é esperada a ocorrência de centenas de milhares de mortes e a constante sobrecarga dos sistemas de saúde (principalmente unidades de terapia intensiva).
Nas políticas de supressão, a opção política preferida, pode-se adotar o distanciamento social intermitente, permitindo que algumas intervenções possam ser revistas periodicamente em janelas de tempo relativamente curto, mas tais intervenções precisarão ser reintroduzidas se/ quando os números de casos se recuperarem. O distanciamento social intermitente somente poderá ser adotado com o monitoramento dos casos suspeitos e de casos fatais com COVID-19 em todos os municípios e estados, em tempo real.
Nesse cenário, é fundamental que o governo federal volte a divulgar de informações da COVID-19, suspensas desde 21/3/2020, de modo que as universidades, institutos de pesquisa, e organizações das Forças Armadas possam auxiliar o governo federal, estadual e municipal no monitoramento da transmissão da COVID-19, e informar aos gestores e à população as perspectivas futuras e a revisão de medidas de combate.
Qualquer atraso na implementação das ações pode implicar em repercussões muito graves, com número crescente de óbitos e aumento substancial da dificuldade para controle da transmissão, a médio e longo prazo. Por isso, é fundamental que todos fiquem em casa. Reiteramos a importância da ciência para a manutenção da vida humana.
|