Data: 30/11/2018
“O assédio moral iniciou no campus de Coari, quando por reiteradas vezes fui chamada à sala do ex-diretor, que, em tom de ameaça, constantemente, lembrava-me que eu estava em estágio probatório. Aos gritos e batendo sua muleta na mesa, afirmava que eu não ia fazer pesquisas naquele instituto, que se eu quisesse fazer pesquisas que construísse um prédio particular e não no laboratório de Genética Molecular Humana do instituto”.
Este relato é de Izabel Heckmann, docente na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e dá conta de como começaram uma série de violências que passou a sofre. A partir dali, gritos, ameaças verbais, boicotes a projetos de pesquisas passaram a marcar a sua vida profissional.
Ela conta que o ex-diretor teve ajuda de coordenadores de cursos e de comissões para reprovar trabalhos e vetar materiais necessários à pesquisa. “[Ele] nomeou colegas sem qualificação para avaliar os equipamentos do meu projeto de pesquisas, sendo que eu era a responsável por aqueles equipamentos”, relata.
Além da violência contra uma pesquisadora séria, os ataques foram estendidos aos seus alunos, que foram proibidos de realizar as práticas laboratoriais, o que trouxe prejuízos à universidade. “Meus projetos de Pibic foram reprovados por colegas de outras áreas, que eram colocados nas comissões para sabotar meu trabalho; do mesmo modo, um colega foi nomeado exclusivamente para questionar a real necessidade do Laboratório de Genética Molecular Humana, isso num campus de Saúde e Biotecnologia, chegando ao ponto do laboratório ser extinto e eu ser excluída de todas minhas atribuições de pesquisas, o que me impediu de sair para pós-doc, sob a alegação que eu não tinha produção científica suficiente”.
A consequência deste processo de violências e perseguições foi o adoecimento da profissional. E foi neste segundo momento, quando já estava doente, que Izabel passou a enfrentar uma nova rodada de agressões. A Junta Médica Oficial atestou a remoção da docente para tratamento de saúde em outra localidade. No entanto, administrativamente, no campus de Manaus, na primeira reunião do conselho departamental, foi negada sua remoção. “Afirmavam que não me queriam porque eu necessito tomar medicamentos, assim, por reiteradas vezes, me foi negado o direito à remoção. Nos corredores, eu era questionada por que estava naquele setor, pois minha remoção havia sido negada por todos; nas reuniões era negada publicamente minha presença; alguns colegas passavam por mim nos corredores com ar de superioridade e menosprezo, foi uma situação muito constrangedora”, conta.
A docente diz, ainda, que era mantida em ociosidade, numa sala sem condições de trabalho. Permaneceu por um ano e nove meses sem portaria de lotação, impedida de desempenhar as atribuições do cargo docente. “Não me foram alocadas disciplinas, por alegarem não existir carga horária, consequentemente ocasionando-me a perda de direitos, como insalubridade, progressões”, lembra.
Em março de 2010, Izabel denunciou a perseguição. Foram necessários três anos e nove meses para que a Comissão de Direitos Humanos do Senado, o Ministério da Educação e o Ministério Público Federal cobras sem a apuração dos fatos. Somente a partir daí houve a instauração de uma comissão de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o seu algoz.
Em outubro de 2014, a comissão concluiu que a denúncia era procedente, recomendando a demissão de um único servidor assediador, deixando os demais impunes. A autoridade julgadora ignorou a apuração realizada e, depois de cinco anos e oito meses, determinou o arquivamento do PAD, sem que ninguém fosse punido.
A ausência de punição incentivou a continuidade da perseguição e do assédio moral, que acabou pulverizado em outros setores da Universidade. Izabel recorreu diversas vezes, a ponto da Comissão Própria de Processos Administrativos Disciplinar admitir que o caso deveria ser considerado dano moral, recomendando que a docente assediada ingressasse com uma ação judicial.
“Administrativamente, entrei com pedido de reconsideração junto ao Conselho Universitário (Consuni), no entanto, os conselheiros não sabem o que é assédio moral. A primeira relatora descreveu o assédio (que sofri) como algo que pudesse ser desprezado, invocou o princípio da insignificância para negar a apuração. Enquanto isso, outro conselheiro requeria o arquivamento da denúncia como forma de medida protetiva a um dos denunciados. Hoje, o processo está em fase recurso, e um segundo parecer, desta vez favorável, será apreciado na próxima reunião do Consuni”, explica.
A docente destaca que o tratamento administrativo dispensado ao Assédio Moral, por meio do trâmite processual administrativo, é muito demorado e ineficaz, embora a legislação determine que a conduta assediadora seja eficientemente combatida e uma punição seja aplicada a quem assedia, a administração pública esquiva-se da obrigação de apurar a conduta de seus servidores.
“O assédio moral destrói a carreira do docente, que adoece e é excluído do trabalho, enquanto espera que o assédio moral seja interrompido, isso não acontece, é como se existisse autorização para assediar, assim o assediado é submetido a outro tipo de assédio, o assédio processual”, acrescenta.
Comissão de Combate ao Assédio Moral na Ufam
Atualmente, Izabel integra a Comissão de Combate ao Assédio Moral na Ufam. “A primeira comissão se formou depois que eu retornei de Brasília, onde participei da audiência na Comissão de Direitos Humanos do Senado. No meu retorno, alguns colegas que sentiam-se assediados, me convidaram para discutir a questão e a Adua – Seção Sindical do ANDES-SN nos acolheu e criamos a comissão, em setembro de 2013”, relata.
Em 2014, produziu--se um Acordo de Cooperação Técnica, que só foi reconhecido pela administração da Ufam em agosto de 2017. Os trabalhos para implantação do documento originaram a Comissão Executiva do Acordo de Cooperação Técnica para a Criação de Mecanismos de Atenção, Prevenção e Combate ao Assédio Moral (Cecam), em maio de 2018, quando foi lançado o Programa de Prevenção e Combate ao Assédio Moral.
Izabel acredita que comissões de combate ao assédio moral deveriam ser criadas em todas as instituições, uma vez que essa prática é comum, e infelizmente muitas vezes naturalizada, no ambiente de trabalho acadêmico. Ela ressalta que os sindicatos de docentes e técnicos têm papel fundamental nessa luta, em especial no acolhimento e denúncia dos casos.
“O servidor, quando é assediado, passa por uma conduta chamada isolamento, todos seus colegas de trabalho se afastam, principalmente porque compreenderem que serão os próximos assediados, por temerem represália e/ou não compreendem o que é o assédio moral, acabam deixando o assediado aototal abandono e sem voz”, comenta.
A docente recomenda que a luta contra o assédio não deve se dar de forma isolada dada a demora e muitas vezes ineficácia do processo administrativo. “Penso que a forma adequada de denúncia deve acontecer por meio coletivo”, acrescenta.
Assédio Sexual: um reflexo do machismo e patriarcado na academia
A professora Tatiana Machiavelli Carmo Souza, da Universidade Federal de Goiás (UFG), trabalha com um grupo de pesquisa que busca compreender o fenômeno da violência contra mulheres no âmbito da universidade, as características do assédio moral e do assédio sexual e do que alguns chamam de assédio institucional.
“O que a gente percebe, é que o problema do assédio, das violências de gênero na universidade decorrem de questões presentes na sociedade como o machismo, o patriarcado, mas também estão relacionados às relações de poder que são muito presentes na universidade, nas relações acadêmicas e na forma como a gente vem estruturando as relações, a hierarquia existente nas relações entre docentes, estudantes, técnico-administrativos e a comunidade acadêmica de uma forma geral”, explica.
Ela conta que o assédio se inicia de uma forma muito invisibilizada, como uma forma de sedução, uma tentativa de controle, na maior parte das vezes entre homens contra mulheres, entre professores contra estudantes. Ou seja, ele está presente nas relações onde há uma desigualdade na hierarquia e naquelas onde há desigualdade de gênero.
“A universidade, de uma forma geral, não tem dado escuta para os casos de assédio e isso acaba agravando essa questão que é histórica. No país, o problema do assédio é histórico, não começou hoje”, ressalta.
Ela acrescenta que a denúncia precisa acontecer para que a universidade crie mecanismos, encontre caminhos para a prevenção, para o enfrentamento e para a instituição de políticas que possam buscar coibir as práticas de assédio e de violência de gênero dentro da instituição.
Segundo Tatiana, enfrentar o assédio sexual, a violência sexual e outras formas de violência baseadas no gênero são de extrema importância no contexto universitário. Além dos canais de denúncia, como ouvidorias, é importante criar espaços de acolhimento e apoio às vítimas. Além disso, também é necessário desenvolver campanhas de conscientização que debatam abertamente o que é o assédio sexual, como e onde ele pode ser denunciado.
“Quando se fala de enfrentamento eu não posso deixar de sinalizar a importância dos movimentos feministas dentro da universidade, do movimento estudantil, dos movimentos sociais de uma forma geral que foram de extrema importância num processo de militância, de questionamento e de cobrar dos responsáveis estratégias e mecanismos de coibição e de enfrentamento da violência. Como por exemplo, o afastamento de um professor denunciado por um estupro em sala de aula”, conta a docente da UFG.
Em 2018, dois professores foram exonerados da UFG regional Jataí após denúncias de estupro e assédio sexual e moral contra estudantes. “Um deles, além do assédio continuado, ao longo de meses, houve o estupro de duas alunas, em diferentes contextos”, relata.
Em virtude do seu trabalho na área, quando os casos foram denunciados em 2017, Tatiana foi chamada para ajudar no acolhimento das alunas. “O envolvimento nesse caso se deu como psicóloga que atendeu e vêm acompanhando essas duas alunas desde fevereiro de 2017, e também como uma professora, como feminista, como mulher, como alguém que milita e que acredita que a gente tem que mover as estruturas para conseguir uma modificação dessa realidade que assola tantas universitárias, que assola tantas docentes e técnicas”, relata.
No mesmo ano da denúncia dos estupros, o Consuni da UFG aprovou a resolução 14/2017, que permitiu a criação de uma comissão de acompanhamento dos casos de assédio moral, sexual, descriminação, violência racismo, homofobia entre outras questões na universidade. Com isso, segundo a docente, houve um envolvimento maior da reitoria no combate e prevenção do assédio moral e sexual.
“Eu acredito que o enfrentamento do assédio e da violência de gênero na universidade ainda tem um longo caminho a percorrer. Primeiro, precisamos criar políticas de equidade de gênero dentro das universidades de uma forma geral. Enquanto tivermos essa desigualdade de gênero tão presente e tão forte na universidade vamos conseguir poucas mudanças”, elenca.
“Outra questão importante é a criação de campanhas explícitas contra o assédio e contra violência de gênero. É preciso que o professor tenha clareza dos limites de poder dele. Que ele saiba que não pode subjugar as mulheres, não pode desqualificar as mulheres, sejam elas companheiras de trabalho ou estudantes. É preciso que o professor saiba da sua limitação como docente. É preciso que fique claro na mentalidade dos professores - que infelizmente é quem tem mais poder dentro do contexto acadêmico - as suas limitações.
As políticas precisam ser claras, efetivas e precisam também responsabilizar os autores de agressão, sejam eles técnicos, terceirizados, docentes, diretores, chefes de unidade”, completa.
Contra o assédio moral e sexual
Com o objetivo de intensificar o combate aos casos de assédio e conscientização da categoria para a questão, o ANDES-SN definiu, em congresso, marcar o dia 17 de outubro como uma data de luta contra os assédios nas Universidades, Cefets e Colégios de Aplicação.
“Por muito tempo, o assédio sexual e o próprio assédio moral foram naturalizados como comportamento normal. No momento em que há um avanço no debate político sobre violência e o que é o assédio sexual e como se configura o assédio moral, a gente vê dentro das universidades, como as professoras e professores se percebem violentados”, conta Caroline dos Santos Lima, 1ª secretária do ANDES-SN e coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas de Classe, Questões Étnico-Raciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS).
Além do dia de luta, o ANDES-SN vem desenvolvendo campanhas de conscientização, com materiais informativos. A entidade também se reuniu com representantes dos reitores de universidades públicas e institutos federais (Andifes, Abruem e Conif), para cobrar maior atenção ao problema que adoece a categoria docente.
“É importante dizer que isso entra como política sindical.Por muito tempo, o debate de assédio sexual e assédio moral ficaram restritos a um reduto administrativo e não se percebia o processo de adoecimento docente”, afirma a diretora do Sindicato Nacional.
O ANDES-SN aprovou em congresso que as seções sindicais, junto com o movimento estudantil e o sindicato dos técnico-administrativos criem instrumentos, para serem levado aos conselhos universitários, que sejam tanto espaço de denúncia quanto de acolhimento às vítimas.
Caroline explica que os assédios sexual e moral no local de trabalho são práticas, muitas vezes, silenciosas. “Se não há uma campanha, não tem um espaço de formação política e organização do movimento sindical e social, esse tipo de situação fica por debaixo do tapete”, comenta.
“Tanto o assédio sexual quanto o moral estão ligados às relações de poder e, principalmente, às relações econômicas. Quem está numa posição de poder hierárquico e econômico superior acredita que pode usar a força ou a violência moral para impor a sua vontade”, acrescenta.
A diretora do ANDES-SN orienta ainda que as professoras e professores que se sentirem ameaçados ou violentados devem procurar documentar e registrar todas situações. “Comprovar que está sofrendo assédio moral significa produzir um dossiê sobre o que você está passando. E isso é muito cruel, porque quem está sofrendo a violência muitas vezes não tem equilíbrio emocional para fazer essa juntada de provas”, diz.
Para que o docente não enfrente o processo sozinho, ela recomenda ainda que procurem a seção sindical do ANDES-SN em suas instituições. E ressalta que além de registrar a denúncia na universidade é importante levar o caso no Ministério Público. “O Ministério Público muitas vezes ajuda, pois é um poder mais isento e cobra que a universidade faça a apuração”, conclui.
Fonte: InformANDES
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