Data: 08/08/2018
“O próximo tempo é de reflexão, e esse tempo de reflexão se faz necessário para o amadurecimento da causa, e precederá necessariamente o momento do julgamento”. Com essa afirmação a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), encerrou na última segunda-feira (6), a audiência pública sobre a descriminalização do aborto. A ministra irá agora preparar seu relatório e convocar seção para votação da ADPF. Ainda não há prazo determinado.
Na última sexta-feira (3), falaram, majoritariamente, aqueles que defendem a aprovação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442. Já na segunda, foram ouvidos, em maioria, representantes de entidades favoráveis à manutenção do aborto ilegal. Ao todo, segundo o STF, foram 60 manifestações de pesquisadores, profissionais da área de saúde e do direito, representantes de entidades de defesa dos direitos humanos e de natureza religiosa. A ADPF 442 foi ajuizada pelo PSOL e questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal. Se aprovada, irá descriminalizar a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação.
Docentes e diretoras do ANDES-SN acompanharam a audiência no STF. O Sindicato Nacional tem posição congressual de fortalecer a luta pela descriminalização e pela legalização do aborto. Também defende o fortalecimento de oferta de políticas públicas de saúde direcionadas aos direitos sexuais e reprodutivos parar atender as mulheres.
Uma em cada cinco mulheres já fez ao menos um aborto
Pesquisadora do Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (ANIS), Debora Diniz, apresentou os resultados de levantamento sobre as mulheres que abortam no país. A fala da docente da UnB, coautora da ADPF, era uma das mais esperadas na sexta. Por conta de seu posicionamento, Debora vem sendo perseguida e recebeu ameaças de morte.
Segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez ao menos interrupção voluntária de gravidez na vida. A maioria realizou o procedimento quando jovem, entre 20 e 24 anos, e hoje já tem filhos.
De acordo com Debora, o levantamento mostra que o aborto faz parte da vida fértil da mulher. Das entrevistadas, 67% têm filhos, 88% declaram ter religião, sendo que 56% são católicas, 25% evangélicas ou protestantes e 7% professam outras religiões.
“Nós as conhecemos na casa ou na comunidade. Aos domingos na igreja ou no culto. Ela é a mulher comum brasileira”, disse. Ela destacou que as mulheres presentes na audiência também compõem a base de dados. “Pensem em todas essas mulheres na cadeia [por terem decidido interromper a gravidez]”, provocou.
Embora seja um evento comum na vida das mulheres, a abstração dos números esconde a desigualdade do risco em abortar. Segundo a pesquisadora, há uma maior concentração entre as mulheres mais jovens, mais pobres, nortistas e nordestinas, negras e indígenas.
“São aquelas mulheres que enfrentam o aborto com uma desproteção integral do Estado brasileiro aos seus direitos fundamentais”, frisou.
O exemplo apresentado por Debora não poderia ser outro. “Ingriane Barbosa morreu com um talo de mamona no útero”, denunciou a pesquisadora, num dos momentos mais emocionantes da primeira parte da audiência.
Ingriane morreu no dia 17 de julho, depois de fazer um aborto em casa em Petrópolis, no Rio de Janeiro. “Foi a criminalização que matou essa mulher. Que deixou seus filhos órfãos”, afirmou Debora. Em seguida, concluiu: “Pede-se a essa corte que ouça o seu desamparo”.
“Descriminalização do aborto não é eugenia”, afirma portadora de doença rara
Adriana Abreu Magalhães Dias, doutora em Antropologia, atacou a relação entre descriminalização do aborto e práticas de eugenia. Autora de uma tese sobre Nazismo Neonazismo e Eugenia, ela foi indicada pelo Instituto Baresi, que representa pessoas com deficiência e doenças raras.
Portadora de osteogênese imperfeita, síndrome conhecida como "ossos de vidro", Adriana afirmou que são decisões pessoais, e não eugênicas, que pautam a interrupção de uma gravidez. “O discurso de que a descriminalização pode implicar a eugenia é uma usurpação da experiência das pessoas com deficiência para responsabilizar as mulheres pela negligência do Estado na promoção de nossos direitos”, ressaltou.
“Nós, mulheres com deficiência, também fazemos aborto. E esperamos por políticas de planejamento familiar adequadas às nossas formas corporais. Podemos decidir se, e quando, teremos filhos”, acrescentou.
Para a antropóloga, a única forma de evitar aborto de pessoas com deficiências gênicas é garantir a não discriminação, o acesso ao mundo da escola, do trabalho, com políticas públicas eficazes.
“Garantir que as mulheres grávidas não tomem decisões baseadas no medo de serem abandonadas pelo estado, pela sociedade e pela família no cuidado solitário de filhos com necessidades singulares, o que pode exigir um investimento material, emocional e de tempo que elas podem se considerar não capazes de atender”, afirmou.
Em 2012, o Instituto Baresi constatou que 78% das mães de crianças com doenças raras graves no Brasil foram abandonadas pelos maridos até seus filhos completarem cinco anos. Essas mulheres passaram a ser as únicas cuidadoras das crianças e responsáveis pela manutenção financeira do lar. E continuaram, ao mesmo tempo, desamparadas pelas políticas do Estado.
De acordo com Adriana, em países com políticas adequadas às pessoas com deficiência, como Dinamarca e Reino Unido, as mulheres sequer realizam teste pré-natal para identificar possíveis doenças genéticas. “E nesses países o aborto é descriminalizado”, destacou.
“Assim, responsabilizar as mulheres que precisam interromper uma gestação enviando uma mensagem discriminatória na sua decisão é uma avaliação cruel. Eugenia, ministro, é nos negar condições de participação na vida social”, concluiu.
Mulher negra tem 2,5 vezes mais risco de morrer
Única mulher negra a ser ouvida na sexta-feira, Fernanda Lopes apresentou dados que comprovam o recorte de raça e classe na criminalização do aborto. Segundo ela, estudos apontam que uma mulher negra que aborta tem 2,5 vezes mais risco de morrer do que uma mulher branca.
Para a representante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (CFSS), a descriminalização e o acesso a serviços de aborto legal não podem estar desconectados do enfrentamento ao racismo. “O racismo estrutura a nossa sociedade de diversas formas e para nós, mulheres negras, a vivência do racismo impede o exercício dos nossos direitos, em especial, mas não exclusivamente, dos nossos direitos reprodutivos”, afirmou.
“Seria ousado dizer que a possibilidade de abortos seguros por mulheres brancas e economicamente favorecidas, garante que o próprio aborto não seja devidamente colocado em discussão? Será que a população que sofre com procedimentos ilegais não importa para o poder público?”, questionou.
Ela denunciou ainda que, diferente das mulheres brancas que fazem "gestão de risco" quando decidem pelo aborto, as mulheres negras e pobres não têm essa opção. Dada a precariedade em que realizam a interrupção da gravidez, não conseguem administrar as suas consequências. Com isso, estão mais expostas às complicações, infecções e hemorragias graves. Muitas demoram a procurar ajuda médica.
“As principais razões da demora são medo de receber tratamento cruel e degradante nos serviços e, posteriormente, o medo de sermos criminalizadas. Por isso, a imposição da penalização é uma violência contra a vida, contra a saúde e contra a nossa dignidade”, acrescentou.
“As mulheres optam por abortar sem a possibilidade de segurança e cuidado providos pelo Estado. E isso afeta, deliberadamente e sobremaneira, a vida de mulheres negras e de mulheres pobres”, concluiu.
Religiosos pela descriminalização do aborto
Uma das manifestações mais aplaudidas no segundo dia de audiência foi a de Lusmarina Garcia, segundo matéria da Agência Brasil. A pastora evangélica proferiu uma das poucas falas favoráveis à descriminalização, dentre os 11 representantes religiosos.
Representando o Instituto de Estudos da Religião, ela ressaltou o que considera uma motivação patriarcal para a posição de muitas entidades religiosas contrárias ao aborto. A pastora defendeu um Estado laico e políticas públicas baseadas no conhecimento. “Há séculos um cristianismo patriarcalizado é o responsável por penalizar e legitimar a morte de mulheres”, acrescentou.
Lusmarina disse ainda que o aborto é praticado por “mulheres comuns e de fé como evangélicas, católicas e espíritas. Essas mulheres comuns, mulheres de fé, devem ser consideradas criminosas?”, questionou. “Gostaria de dizer a cada uma delas: vocês não estão sozinhas e vocês não são criminosas”, respondeu.
A luta pela aprovação da ADPF 442 ganhou também apoio, na audiência, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e da Confederação Israelita do Brasil. Representantes das duas entidades se posicionaram pela descriminalização do aborto e pela separação entre Estado e religião.
Dados
Durante os dois dias de audiência, foram apresentados diversos dados que evidenciam que a criminalização do aborto não reduz o número de casos. E também o quanto impede o direito à saúde reprodutiva e sexual das mulheres. Confira alguns:
- Na América do Sul, 48 mulheres em 100 fazem abordo por ano, quando na América do Norte, o número é 17.
- Na Romênia, onde o aborto é legal, houve redução de 94% dos casos após a descriminalização.
- No Canadá, a taxa de abortos entre adolescentes caiu em 30% após a descriminalização.
- Em 2015, mais de 500 mil mulheres brasileiras abortaram, sendo a maioria delas pobres, negras e indígenas.
- O Judiciário já descriminalizou aborto dezenas de países como Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália, Argentina e Portugal, Bélgica, Canadá, Espanha, México, Costa Rica e Macedônia.
Fotografia: STF
Fontes: STF, Agência Brasil e ANDES-SN |