Em entrevista concedida ao Jornal da ADUA, o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Caio Antunes, discorreu sobre a ofensiva do Capital articulada em parceria com o “governo terceirizado” de Michel Temer e caracterizada por medidas regressivas como o projeto Escola Sem Partido e as Contrarreformas Trabalhista, Previdenciária e do Ensino Médio. A partir das teses do filósofo húngaro István Mészáros (falecido no dia 2 de outubro de 2017), o especialista aponta também quais as implicações desta articulação para a vida do trabalhador brasileiro.
Para István Mészáros, “a educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida”. Como é possível seguir essa premissa na atual conjuntura?
Quando Mészáros aborda a questão educacional, ele não está se referindo ao que acontece na escola, ao que acontece dentro da instituição formal de educação. Ele trata a educação como um processo de formação humana. Portanto, um processo ininterrupto que acontece ao longo da a vida de todo ser humano. Entender a ideia de que uma educação não deve formar para o mercado de trabalho e sim para a vida, em Mészáros, significa entender que os processos formativos não devem ser orientados para a qualificação da força de trabalho para a sua venda. É elemento constitutivo inerente do projeto Escola Sem Partido e da Contrarreforma do Ensino Médio essa redução da educação institucional aos ditames mais imediatos da lógica reprodutiva do Capital por meio de uma pseudo qualificação dos trabalhadores e trabalhadoras para a venda da sua força de trabalho no mercado. Confrontar a imediatidade restrita dessa instrução formal capitalista com o conceito amplo de educação e formação para a vida apontado por Mészáros é necessário hoje. Porque entender o processo formativo como um processo orientado para a vida, portanto para os valores humanos, a ética, a estética e a política, significa confrontar visceralmente a imediatidade de uma formação precária. Isso, aliado com a Reforma da Previdência, com a ampliação da terceirização das atividades fins para a venda da sua força de trabalho na estrutura que o Brasil vem organizando, não está garantida nem para amanhã de manhã. E uma formação tão precária quanto essa que a Contrarreforma do Ensino Médio pretende, aliada com o recorte ideológico do Escola Sem Partido, vai fazer não só com que as pessoas tenham uma qualificação aquém da possibilidade imediata da venda da sua força de trabalho, como logo tenham de comprar essa qualificação extra em instituições privadas. Essas instituições vão vender essa qualificação que a escola pública não há de dar e com o pensamento engessado, amordaçado, praticamente estuprado pelo Escola Sem Partido. As pessoas terão dificuldade de ter elementos teórico-cognitivos para confrontar e não desnaturalizar essa relação.
Mészáros recusa a noção de reforma que se propõe apenas a correções marginais. Em sua opinião, por que as reformulações educacionais são sempre reducionistas?
A crítica do Mészáros a estratégia reformista tem vários elementos. Para Mészáros, o sistema do Capital é um conjunto de relações sociais entre produção e apropriação que se materializa de variadas formas, sendo uma dessas formas o modo de produção capitalista. O Capital como um todo e como seu modo de produção da vida, o capitalismo, são para ele coisas irreformáveis. Existe um movimento interno do Capital, que precisa acontecer, intensificar-se e gerar contradições que se tornem mais explosivas. Essas contradições podem vir na forma de crise como, por exemplo, a de 29, as de 68 e 73, na qual ainda estamos. Essas crises são geradas pelo movimento interno do Capital e o Capital para superá-las precisa intensificar o seu movimento. Por isso, para Mészáros, não é possível modificar esse movimento interno porque esse é intrínseco a ele. A modificação desse movimento desestruturaria o capital. A reforma que o Capital empreende, de maneira nenhuma tenta encontrar ou solucionar um problema, mas sim solucionar a ocorrência paliativamente desse problema. Ele entende que o Capital não deve ser reformado, ele deve ser radicalmente transformado. Tudo isso que estamos vivendo no mundo, nas mais variadas esferas da vida social, dentre elas a Educação, compõe para o Capital um dos aspectos da sua estratégia reformista. Está tentando aparar algumas arestas do sistema educacional, no caso mundial, mas no caso brasileiro, para tentar solucionar algumas questões internas do seu movimento interno.
A concepção de Educação como mercadoria cresce sistematicamente. Qual o papel dos empresários da Educação e do interesse do Capital nos rumos da educação brasileira?
A influência do setor empresarial na educação é poderosa, não só na deformação, destruição e na constituição de novas políticas educacionais, mas também no reordenamento geral do Estado. Basta pensar que temos no Brasil a maior empresa privada educacional do mundo. Isso não é pouca coisa. E agora, há pouco tempo, foi negada a fusão entre as duas maiores empresas educacionais brasileiras. Se essa fusão tivesse ocorrido, esse conglomerado que já é o maior do mundo tornar-se-ia, certamente, monumentalmente gigantesco. O papel dos empresários da educação no estado e na constituição das políticas educacionais é fundamental, mas não deve ser entendido apenas como uma iniciativa isolada do setor privado empresarial. Este movimento compõe um realinhamento hegemônico do capital em todas as suas esferas, em todos os países do mundo. O grande Capital tem já, há algumas décadas, ocupado o Estado como uma ação ou iniciativa deliberada e mais feroz. O Capital sempre ocupou o Estado.
A escola do Capital cada vez mais alarga suas fronteiras no Estado brasileiro. Qual o futuro da universidade pública diante dessa abrangente e enraizada pedagogia definida pelo mercado?
A universidade pública brasileira, tal qual qualquer outra esfera da vida social, não só não está imune à sociedade de classes no interior da qual ela se constitui e em relação a qual ela atua, como a universidade pública tem peculiaridades nessa luta. Há sobre o Estado, a saúde pública, a previdência pública, a educação pública da qual a universidade é parte, essa iniciativa articulada com esse movimento do Capital que vive um momento de crise profunda. No interior desse processo, é que se insere por um lado a mercadorização da educação, portanto o incentivo monumental, inclusive por parte do Estado, da iniciativa privada de Ensino Superior. Basta lembrar Paulo Renato de Souza, o ministro que ficou tanto tempo no poder quanto Gustavo Capanema, o ministro da Educação da Ditadura Militar. Foi nesse momento que houve uma absoluta extinção dos investimentos nas universidades públicas e um incentivo maciço na universidade privada brasileira. Depois desse momento, os dois governos Lula e um governo e meio Dilma ou menos que meio Dilma, houve um incentivo e um investimento na ampliação do ensino público, mas esse investimento não foi igualado ao que houve nos governos PT ao investimento no ensino privado e na ampliação via Reuni, por exemplo, que houve nas universidades públicas e que é importante ser mencionada. O que a universidade pública passa hoje dá para ter um paralelo com o que a escola pública passou há algumas décadas. A escola pública brasileira foi uma escola muito forte quando nela estudavam os filhos da elite. Quando a população começa a adentrar, essa escola é devastada e abre-se ou surge como salvação uma escola privada onde pode estudar quem pode pagar. É possível que a universidade pública esteja passando por um processo semelhante.
Quanto ao conceito da luta de classes, ou método da luta de classes, como defendê-lo como categoria de leitura e estratégia de transformação social num quadro de prevalente intelectualidade adesista?
Chega a ser curioso você precisar mostrar para as pessoas que a tomada de posição delas é luta de classes. Não deixa de ser um emblema da mediocridade intelectual de nosso tempo. Um primeiro aspecto curioso é tratar esse tipo de ser humano como intelectuais. Não só pelo fato de que esses seres humanos não são intelectuais ainda que possam vir a ter alguma organicidade com o lado do Capital na luta de classes. Por outro lado, é muito característico que essas pessoas autodenominem-se como intelectuais, o que é um claro esforço de não se colocarem como trabalhadores. Nas universidades públicas brasileiras, hoje, é curioso ser forçado a constatar que as pessoas que nela trabalham entendem-se como intelectuais e não como trabalhadores. Essa é uma clara manifestação da luta de classes e chega a ser curioso ter que escancarar e dizer isso com todos os pingos nos is e todos os cedilhas. Mas exatamente o movimento ideológico de neutralização da luta de classes é um dos aspectos fundamentais do ponto de vista burguês, do Capital na luta de classes. Ele não só precisa ser escancarado como precisa ser evidenciado de um outro ponto de vista de classe radicalmente contrário e confrontador deste. Na universidade, a luta de classes precisa ser escancarada porque o movimento é de sua ocultação, de escamoteamento.
O que pode afinal a escola dos trabalhadores diante de tamanha regressão política, cuja expressão mais agressiva e obscurantista para a educação se materializa na "escola sem partido" ou lei da mordaça?
A Escola sem Partido e a contrarreforma do Ensino Médio estão profundamente articuladas com a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista. Todos esses movimentos pontuais estão articulados a uma ofensiva do Capital. É uma ofensiva desesperada do Capital que vive o seu momento de crise que se arrasta de 78 até agora. O Mészáros denomina essa crise de Crise Estrutural do Capital, ou seja, não é uma crise só do capitalismo. Não é uma crise capitalista e sim do Capital. Este movimento articulado em diversas frentes visa uma organização e uma adequação de toda classe de homens e mulheres que vive apenas da venda da sua força de trabalho às necessidades deste mercado capitalista, de um Capital em crise. A compreensão dessas categorias fundamentais – a crise estrutural do Capital, Capital irreformável e o reformismo como estratégia do Capital – permitem a articulação desses diversos aspectos.
Fonte: ADUA |