Data: 01/09/2017
Com foco no combate ao que chama de doutrinação, o Escola Sem Partido vem ganhando força no País. Eufemisticamente também chamado de Escola Livre, o projeto tenta barrar, no âmbito escolar, a discussão de temas como diversidade sexual, religiosa e política. Esse é um dos pontos ressaltados por Fábio Candotti.
O professor ressalta, ainda, que, mesmo sem o aval da lei, a disseminação das ideias do movimento já vem causando a perseguição e suspeição de professores. Segundo Candotti, uma questão crucial da necessidade de discussão do tema e da reação dos docentes é o fato de que o movimento visa a perpetuação da escola como espaço opressor.
O nome Escola Sem Partido dá a falsa ideia da ligação entre escola e partidos políticos e no Estado de Alagoas foi, inclusive, rebatizado de Escola Livre. O uso desses termos gera confusão. Considerando esse contexto, o que, na prática, esse movimento defende?
O Escola Sem Partido é um movimento criado em 2004, que ganhou força em 2014 a partir do momento que foi convertido em projeto de lei. É frágil do ponto de vista legal, porque fere princípios básicos como a liberdade de ensino, pluralidade de concepções pedagógicas e a questão da formação para a cidadania. Ao mesmo tempo, faz parte de uma estratégia discursiva convincente, que valoriza o pluralismo de ideias e afirma a neutralidade política ideológica e religiosa do Estado, um conceito jurídico que não existe, mas é plausível. Defende, ainda, que os filhos não recebam uma educação moral divergente das convicções de seus pais e considera que os alunos são uma audiência cativa e que deve ser protegida do assédio moral dos professores. Esse é um argumento convincente para muita gente. Sob o nome sem partido está uma estratégia articulada que afirma que os professores são potenciais doutrinadores ideológicos e que o movimento se propõe a controlar isso.
O Escola Sem Partido tenta, de forma legal, silenciar os professores. Qual o impacto disso na formação estudantil?
Independentemente de ser legalizado faz parte de um movimento muito mais amplo que já está policiando o trabalho do professor e o coloca em suspeição. O objetivo é conter um processo positivo – que vem acontecendo nas escolas brasileiras, nos últimos 30 anos, e que ganhou força nos últimos 10 anos – de fazer da escola um espaço de discussão de diversidades religiosa e sexual e de perspectivas anticapitalistas. A escola, historicamente, é um espaço de opressão contra pensamentos minoritários. Se esse movimento ganha mais força, a tendência é que essa opressão contra minorias religiosas, políticas e sexuais seja aumentada. Muitos dizem que isso retoma os princípios da Ditadura Militar. De fato, o policiamento ao trabalho dos professores se assemelha à Ditadura, mas a estratégia discursiva parte de princípios liberais. A estratégia poderia ser: queremos que o Estado dê uma educação moral, cristã, defensora da família, contra o homossexualismo e o Marxismo. Mas não. A estratégia é defender que o que chamam de educação moral, sexual e religiosa seja feita pela família, o que limita a escola a um espaço de instrução. A questão sexual e religiosa tem um peso forte. A todos os projetos foram adicionados parágrafos sobre educação moral, sexual e religiosa. O Escola Sem Partido faz parte de um movimento internacional e enxerga uma difusão da ideologia de gênero que, para eles, faz parte de uma conspiração mundial, neocomunista, marxista, encampada pelas feministas e pelo movimento LGBT, para destruir a família e gerar o caos na sociedade. Esse é o discurso. Isso pode ser engraçado para alguns, mas para outros é muito sério. Isso vindo da boca de professores, religiosos e de políticos ganha um status de verdade. E não é algo que começa nem termina com o Escola Sem Partido.
O que seria exatamente essa educação moral?
Educação moral é quando se concebe a educação não apenas de instrução, mas de comportamento. Não temos que cair na oposição problemática entre instrução e educação. No meu ponto de vista, essa separação não existe. A preocupação com a educação moral tem se mostrado uma preocupação em formar indivíduos a partir de concepções externas a eles, multidisciplinares, autoritárias. Educação moral é formar um indivíduo obediente a determinados valores. Acho isso perigoso mesmo quando consideramos os valores da democracia. Hoje, a tendência é seguir uma pedagogia autoritária, que impõe princípios.
A barragem deste processo de mudança da educação é preocupante. Como você vê os efeitos disso no futuro estudante universitário?
A escola não é um espaço de educação para a cidadania, ainda que a legislação diga isso. A escola é um espaço em que se enclausura jovens e se impõem a eles estudos. Acredita-se que eles não têm direito a escolher. Uma das preocupações do Escola Sem Partido é que os professores não incitem os alunos a movimentos sociais e políticos. A intenção deles é desagregar, fazer com que as pessoas estudem sozinhas e se preocupem em passar de ano. O que esse movimento tenta é fazer com que a escola continue sendo um espaço opressor.
A instituição do Escola sem Partido provocaria uma revolução no sistema educacional. Há conquistas educacionais em risco?
Sim, mas isso está acontecendo para além do Escola Sem Partido. Estudantes gays, lésbicas, bissexuais, trans e o movimento estudantil estão sendo perseguidos. A escola já é um espaço em que qualquer tentativa de mais liberdade é contida, é objeto de preocupação de pais, pedagogos etc. Os professores também já estão sendo perseguidos e acusados de doutrinação na delegacia. Existem outros projetos de lei que têm muito mais possibilidade de vingar do que o Escola Sem Partido. Desde 2013, temos mais de uma centena de projetos voltados, por exemplo, para barrar a discussão de gêneros na educação e retirar o registro de identidade de gênero e orientação sexual de documentos públicos.
Quais seriam esses outros projetos?
Tem um projeto, que me parece o mais perigoso de todos, que tipifica como crime ou infração penal o assédio ideológico. Acredito que o Escola Sem Partido trocaria a aprovação de um projeto deles pela aprovação desse projeto, que já passou pela Comissão de Justiça na Câmara Federal. Esse projeto se apoia na mesma ideia de que o professor não pode se aproveitar da audiência cativa de alunos para pregar suas ideologias e convicções. Esse movimento, que está para além do Escola Sem Partido, e que já acontece nas escolas e universidades, coloca o professor numa situação de fragilidade, porque isso depende das relações de força dentro da escola. Por exemplo, se ele tem problemas ou não com a direção da escola, se um pai de aluno reclama do que ele disse, ele pode perder o emprego. Já falei para pessoas que concordam com o Escola Sem Partido sobre o fato de que, se a direção da escola tende para [um posicionamento político de] esquerda, ela pode expulsar professor que tem discurso de direita. Você pode reverter para os dois lados ainda que o foco de ataque seja as pedagogias libertárias. O que importa é que já está ocorrendo o policiamento por parte de pais, estudantes e advogados que assediam professores a partir de denúncias.
O que já está posto hoje na educação não é ideal. A escola sem partido não é o ideal. O que, na sua visão, seria uma escola ideal?
O movimento da educação tende a defender a escola e cair num erro, na defesa de uma educação moral. A escola precisaria respeitar os estudantes e a autonomia deles. Existem escolas que tentam fazer isso. São escolas democráticas, onde estudantes decidem o que vão aprender e comer, resolver problemas gerais. Não é uma escola dividida em séries, onde os alunos ficam enclausurados em sala e o professor aparece para dizer o que ele acha importante. É uma escola onde o estudante vai atrás daquilo que quer saber. Muita gente acha que isso provocaria o caos, mas n experiências pelo mundo comprovam experimentalmente que isso funciona.
O movimento Escola sem Mordaça é o contraponto. De que forma a categoria pode se preparar para se defender quanto ao cerceamento de sua liberdade de expressão?
Não estamos preparados ainda. Foi construído um modelo de notificação extrajudicial para denúncia [por um advogado, em Mato Grosso] contra doutrinação ideológica, principalmente ideologia de gênero, mas ainda não construímos [os professores] um instrumento de proteção. A Universidade é onde isso pode ser construído por meio de uma discussão acadêmica, administrativa e jurídica. Precisamos aperfeiçoar o conhecimento sobre o que é o Escola Sem Partido, não podemos cair na besteira de que se trata simplesmente de reacionários que estão querendo voltar ao tempo da Ditadura. O Escola Sem Partido é uma proposta de escola para o futuro. Temos que construir protocolos de defesa e instrumentos de divulgação de outras formas de educação. A avalanche de projetos que ataca a ideologia de gênero nos coloca positivamente a questão de qual educação e princípios pedagógicos e educacionais queremos. Os movimentos sociais de educação têm se voltado para questões salariais, de carreira e de investimentos públicos, que são fundamentais, mas têm deixado de lado um debate sobre o que desejamos para a educação. Com isso, o Escola Sem Partido ataca o pouco de liberdade que a escola dá que é a liberdade de ensino. O desafio é construir um debate democrático e público sobre os princípios educacionais. Há muito tempo não fazemos uma avaliação concreta, pública, coletiva e democrática do que é a escola hoje. Como nós insistimos numa coisa que absolutamente não funciona? Acho que essa é a questão.
Fonte: ADUA
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