Daisy Melo com a colaboração de Lucas Araújo
Não há registros oficiais de racismo sofrido por estudantes, docentes e técnicos/as da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) na Ouvidoria da instituição. É o que informa o Departamento de Políticas Afirmativas (DPA) da Pró-Reitoria de Extensão (Proext). Apesar dessa lacuna, o racismo ronda os corredores da universidade. Negras, negros e indígenas relatam que já vivenciaram e/ou vivenciam o problema.
É o caso do mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia da Ufam, Josias Sateré-Mawé. Ao ingressar no curso de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas, em 2007, por meio do sistema de cotas, ele conta que teve um “sentimento de insegurança de estar perto de vários colegas e, ao mesmo tempo, se sentir sozinho”.
E o receio realmente se concretizou. “Alguns colegas achavam que o estudante indígena não tinha nada a contribuir a não ser atrapalhar o grupo de estudo”, conta. Outro episódio marcante para o estudante foi a seleção a vaga de uma monitoria. “Quando os coordenadores da seleção souberam que tinha um candidato indígena, fizeram a entrevista, mas fui desclassificado sem chances de apresentar meu currículo Lattes”.
E Josias não é o único. Desde quando ingressou na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em 2009, o mestrando em Antropologia da Ufam, Jesiel Sateré-Mawé, tem passado por situações semelhantes. “Racismo e preconceito sofri desde a entrada na universidade e passo por isso até hoje, mesmo tendo chegado ao mestrado, a questão do preconceito é ruim, independente de termos estudo ou termos um bom cargo, sofremos preconceitos dos colegas e professores, muitos amigos e parentes sofrem com isso e acabam desistindo”, relata.
Jesiel conta que sentiu constrangido ao ser abordado na frente de todos com um “ei, índio!” por uma professora do curso. “A universidade parece não estar pronta para o novo, para o diferente, nem para a riqueza dos povos indígenas, isso marcou negativamente minha vida, mas eu nunca me rebaixei, nunca desisti, pois meu povo é forte e guerreiro”.
Ao ingressar na Faculdade de Música na Ufam, em 2017, Karen Francis, conta que sentiu desconforto com o “ambiente embranquecido”. “No curso, eu posso contar, pelo menos, 10 colegas negras, negros e indígenas, com eles eu me fortaleço, mas a pouca quantidade revela a desigualdade da educação brasileira”, afirma.
O ambiente embranquecido citado pela universitária é confirmado pelos dados da universidade. Do total de 1.869 docentes ativos, apenas 1,55% são negros (29), 1,44% são negras (27), 0,43% são professores indígenas (8) e 0,16% professoras indígenas (3). Os dados foram fornecidos no dia 21 de novembro pelo Departamento de Administração de Pessoal da Ufam, da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progesp). A instituição não informou o número de discentes negras, negros e indígenas.
Racismo religioso
Há também relatos de racismo religioso na Ufam. Em setembro deste ano, um painel com imagens representativas de manifestações religiosas de matriz africana foi destruído. “(...) ao chegarem pela manhã [os estudantes] encontraram seu trabalho todo sujo, rasgado em cima da mesa e no chão”, conta a professora Tharyn Machado, que ministrava a disciplina “Antropologia e Educação”, para alunas/os de Pedagogia, na Faculdade de Educação (Faced).
Na ocasião, a ADUA - que juntamente com o ANDES-SN combate o racismo - emitiu uma nota de repúdio. “Esse tipo de ataque manifesta demonstração de ódio e intolerância, de aversão à liberdade de pensamento, típico de uma disposição política reacionária, contrária à ciência e aos pilares que caracterizam o ambiente acadêmico como expressão da educação para a libertação”, afirma a entidade no documento.
Na nota, o sindicato repudia veementemente qualquer manifestação de intolerância e de censura à atividade intelectual na Universidade. “As instâncias responsáveis colegiadas e administrativas da Ufam devem se colocar alertas e à disposição para esclarecer esse ataque. E, por fim, o conjunto da comunidade acadêmica não pode admitir esse tipo de ato como normal. É preciso dizer basta!”.
“Discutir o racismo é trazer luz para entendermos a complexidade das relações de exploração-opressão da sociedade capitalista e, nessa direção, da luta de classes. O racismo é uma violência estrutural e tem causado impedimentos, constragimentos e adoecimento para professores, técnicos e estudantes. Para a ADUA, é um desafio que se coloca como prioridade, pois compreendemos que a defesa da educação pública de qualidade implica em enfrentrarmos a violência institucional no contexto das universidades”, salienta a 2ª vice-presidente da ADUA, Milena Barroso.
A professora Tharyn conta que a Faculdade não buscou o “culpado, o infrator ou até mesmo a punição desse sujeito”, mas educá-lo. “Conti-nuaremos debatendo e construindo conhecimento sobre a diversidade cultural, unidos contra a ignorân-cia que fortalece tanto preconceito, tanta intolerância, continuaremos ocupando esse espaço plural, en-riquecendo e dando fôlego para os debates e reflexões críticas que cons-titui essa universidade, avançando além dos muros para que toda a sociedade sinta-se contemplada com o conhecimento que é desen-volvido nesse lugar. (...) Não vamos nos silenciar e, sim, cada vez mais construir conhecimento e debater criticamente sobre as questões que envolvem a educação e a cultura do Brasil e do mundo”, afirma.
A docente lamentou a ocor-rência do caso na universidade, um ambiente que deveria “congregar posturas democráticas”. “Infeliz-mente presenciamos todos os dias situações semelhantes de opressão, de racismo, de xenofobia, de intole-rância a toda e qualquer diferença e, dessa vez, mais uma entre tantas, aconteceu dentro de um espaço público, no interior de uma univer-sidade pública (...) num espaço de diversidade, num espaço que é de nosso direito ocupá-lo de maneira plural e diversa e nosso dever prote-gê-lo”.
Diante desses relatos, evidencia-se que o racismo está presente na Ufam apesar de não constar em registros oficiais. Essa realidade, in-clusive, dificulta o embasamento da criação de políticas de conscienti-zação e enfrentamento ao racismo institucional. Conforme o DPA, “de maneira formal, nenhuma política a este respeito foi tomada pela ins-tância superior para evitar as desi-gualdades raciais e à intolerância religiosa”. Para mudar esse cenário, a comunidade pode realizar as de-núncias na Ouvidoria pessoalmen-te ou pela internet (www.portalou-vidoria.ufam.edu.br).
Pesquisa sem apoio
A produção científica é uma das ferramentas no combate ao racismo nas instituições de ensino. “O trabalho intelectual é uma ação política, e pesquisas de caráter descolonizador fomentam a construção de outra história, em que o povo negro resistiu à escravidão, e a sua cultura influenciou novos hábitos, outro modelo de família, uma história do ponto de vista do oprimido. Isso garante condições de disputa no campo científico”, afirma trecho da Cartilha de Combate ao Racismo do ANDES-SN.
Mas, são muitas as dificuldades que se impõem para os que buscam produzir esse conhecimento. Segundo Josias Sateré-Mawé, alguns professores se esquivam de trabalhar temáticas indígenas. “Dois anos de estudo correndo atrás de professores que pudessem nos dar uma oportunidade para trabalhar a temática indígena (...) poderia ser menos dramático se tivessem mais professores sensíveis à causa indígena dentro da Universidade”.
O mestrando conta que, antes da seleção para a iniciação científica, conversou com docentes responsáveis pela orientação sobre seu interesse em desenvolver pesquisas com a temática e todos, segundo Josias, se recusaram a prestar orientação. “Foram unânimes, pediram desculpas por não entenderem sobre os assuntos indígenas, fiquei sem orientação e sem condições de argumentar”, conta.
Dos 2.229 projetos em desenvolvimento nos programas de pós-graduação da Ufam, de 2013 a 2017, apenas 5,3% abordavam a temática indígena (119); 0,5% a interculturalidade (11) e 0,5% conhecimentos tradicionais (12). Já entre as teses e dissertações nos programas de pós-graduação, somente 5% dos 2.118 tratavam a temática indígena (106); 0,7% a interculturalidade (16) e 0,5% conhecimentos tradicionais (10). Os dados foram levantados da página da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), José Silverio Baia Horta, e a professora aposentada da Ufam, Rosa Helena Dias da Silva.
Sobre essa dificuldade de realizar produção cientifica com essa temática, Josias comenta que há docentes esclarecidos sobre o tema na instituição, mas nem todos aplicam os conhecimentos. “Existem alguns que escutam, participam de eventos, sabem que devem criar estratégias de acesso e oportunidade aos indígenas, mas acabam fazendo tudo ao contrário, permitindo o preconceito e a discriminação de caráter institucional”, afirma.
O racismo não apenas dificulta a pesquisa como a permanência de negras, negros e indígenas nas instituições de ensino. Josias relata que, na universidade, conviveu com duas indígenas: a irmã e uma professora, ambas com experiências negativas. “Minha irmã desistiu depois de dois anos (...) tive uma professora indígena que sempre me ajudou nas atividades de sala de aula, ela também foi muito criticada por professores e alunos por ministrar aulas no ensino superior”, conta.
Papel da educação
A questão da reprodução do racismo nos espaços educacionais é ainda mais problemática quando se considera que esses ambientes deveriam ser ponto de partida para uma mudança consistente do racismo estrutural. “O papel de descortinar as amarras históricas, através dos processos educativos que foram atrelados aos estereótipos da figura do homem e da mulher negra e das religiões de matriz africana e afro-brasileira, torna-se pilar para a estruturação das novas reflexões”, afirma o professor doutor Linconly Jesus, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), um dos palestrantes do Seminário “Racismo Estrutural e os Desafios para a Educação Pública”, realizado em novembro pela ADUA.
É preciso também, segundo o docente, possibilitar reflexões para a implantação das leis 10.639 (obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira) e 11.645 (inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e cultura afro-brasileira e indígena) e a abrangência de forma interdisciplinar e transdisciplinar nos currículos, da história e da cultura africana e afro-brasileira, da educação infantil ao ensino superior. “O nosso conhecimento não é de base linear. Se não é, ele não pode ser compartimentalizado, por exemplo, dentro dos paradigmas cartesianos, da compartimentalização de saberes. A lei já diz: é interdisciplinar e transdisciplinar”.
Neste âmbito, é fundamental não apenas romper os grilhões que amarram as estruturas, mas também as mentes dos educadores e educadoras que estão colonizados a ponto de barrar a implantação da lei, de acordo com Linconly Jesus. “Como falar de descolonizar currículo se não se fala da descolonização de corpos e mentes? O nosso corpo é engessado, o nosso currículo é entrincheirado. O processo de descolonização curricular não tem efetividade sem a descolonização de corpos e mentes que foram domados, que ainda estão presos no positivismo acadêmico ou no modelo cartesiano disciplinar de compartimentalização de saberes ainda tão evidente no sistema educacional brasileiro e na formação de professores”, afirma.
A aplicação desse modelo é imperativa para a visualização de um novo patamar evolutivo na sociedade que é a relação humanidade, natureza e ancestralidade, na análise do professor da Unilab. “Somos forçados a compreender a necessidade urgente de novos referenciais teóricos e mitológicos para a nossa atuação em sala de aula. O que está aí não nos contempla, o que está aí nos exclui, essa atuação precisa ser em várias frentes”, disse.
Linconly questiona: qual o papel da universidade em relação a isso? A primeira amarra que precisa ser quebrada, segundo o docente, é a ideia de que a universidade é o único espaço produtor e legitimador do conhecimento. Para o professor, o eurocentrismo mantém na academia a ideia de colonialidade e de que a universidade é o único espaço produtor e legitimador do conhecimento. “Se a universidade não reconhece os povos originários, os povos indígenas, quilombolas, as populações campesinas e de terreiros como produtoras de seu próprio conhecimento, de suas próprias epistemologias, ou fazendo com que essa relação campo e cidade seja compreendida em outra perspectiva que não a do conhecimento, como vai desconstruir esses estereótipos e essas amarras racistas, o racismo estrutural?”, questiona.
Políticas de ação afirmativa
Compartilhando de pensamento semelhante, a professora do departamento do Departamento de Ciências Sociais, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro Indígena (NEAI/Ufam) e coordenadora da temática relações Étnico-raciais e Quilombola do Departamento de ação Afirmativa da (Ufam), doutora Renilda Aparecida Costa, afirma que uma das formas da universidade combater a desigualdade e exclusões raciais é por meio das políticas de ação afirmativa. “Seja pela implementação de cotas ou revisão das matrizes curriculares dos cursos de graduação, no sentido da inclusão no currículo dos conhecimentos sobre a história e cultura africana, afrobrasileira e indígena nos cursos de graduação como sinaliza a lei 10.639/03 e 11. 645/08”. Um avanço neste aspecto, segundo a docente, foi a construção de núcleos de estudos afro-brasileiros, nos Institutos Federais do Amazonas, Ufam e UEA em que se articulam o ensino, a pesquisa e extensão.
Para isso, as políticas de ação afirmativa precisam ser atendidas para além das cotas, chama a atenção a coordenadora do Laboratório de Afro Brasilidade, Gênero e Família (Nuafro) e líder do Grupo de Pesquisa Relações Étnico-Raciais: Cultura e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará (UECE), professora e doutora, Zelma Madeira. “Se hoje as cotas promovem igualdade racial, nós estamos com as cotas, mas o importante não é sermos contra ou favor das cotas, é sermos a favor da justiça racial, do reconhecimento étnico, é isso que nos interessa (...) a nossa luta é pelo respeito ao modelo de desenvolvimento apresentado pelos povos originários, eles tem saída e nós precisamos ter uma escuta qualificada para tal”, afirma a docente que também palestrou no seminário “Racismo Estrutural e os Desafios para a Educação Pública”, organizado pela ADUA.
Neste aspecto, o ANDES-SN alerta em sua Cartilha de Combate ao Racismo que as políticas de ação afirmativa visam não só “a garantia da reparação social e econômica, mas também possibilitam que haja uma mudança epistemológica na universidade, uma vez que estudantes oriundo(a)s de diversas comunidades e culturas atravessam os muros não só com seus corpos, mas também com seus saberes, suas perspectivas suas vozes”.
Avançando neste sentido, a legislação brasileira possui políticas de promoção da igualdade racial, frutos da luta do movimento negro. É o caso da Lei 12.711, de 2012, que estabelece as cotas nas universidades públicas brasileiras. “A 12.711 tem mudado a realidade, mas queríamos cotas plenas raciais e essas cotas são sociais, porque elegem três critérios e o primeiro é republicano: ser egresso de escola pública, se um negro tiver estudado com bolsa de estudo, está fora”, comenta a docente da UECE.
Outra lei que tem possibilitado as mudanças nas bases do racismo estrutural do país é a 12.990, de 2014, que reserva aos negros 20% das vagas ofertadas nos concursos públicos no âmbito federal. Nos casos das duas legislações, as bancas heteroidentificação têm atestado a veracidade da autodeclaração étnico-racial e impedido a ocorrência da apropriação indevida das cotas.
Comissão de heteroidentificação
Mas, nem todas as universidades brasileiras possuem comissões de heteroidentificação. Até 2017, somente 18 de 104 IES subordinadas à Lei de Cotas haviam constituído comissões. Deste total, 13 são universidades e cinco são Institutos Federais, conforme dados da tese de doutorado “Implantação da Lei de Cotas em três universidades federais mineiras”, de Adilson Pereira dos Santos, de 2018.
Na Ufam, as comissões de heteroidentificação estão em fase de estruturação por meio de um Grupo de Trabalho instituído através da portaria GR/Ufam 1.412, de 10 de abril de 2019. “No momento estamos finalizando a escrita da portaria que normatizará no âmbito da Ufam a questão nos concursos públicos, além dos cursos de graduação e pós-graduação”, esclarece Costa.
Neste processo, capacitações foram realizadas através de seminário sobre cotas raciais e bancas de heteroidentificação, organizados pelo NEAI/Ufam em maio e outubro deste ano. Segundo a professora, os seminários tiveram como objetivo contribuir com a formação dos técnicos, estudantes e professores, bem como de ativistas do movimento social para compor a Banca Geral de Heteroidentificação da Ufam. Esta, segundo ela, “terá como atribuições assessorar os membros das bancas setoriais no âmbito das pró-reitorias, no que se refere aos procedimentos de heteroidentificação de autodeclarados negros (pretos e pardos)”.
Além da inserção nas universidades, a permanência de indígenas, negras e negros é outra questão que precisa ser discutida institucionalmente, mas que já vem obtendo avanços. É o que apontam pesquisas recentes sobre o desempenho de cotistas, segundo a professora Renilda. No artigo “Cotistas e não-cotistas: rendimento de alunos da Universidade de Brasília [UnB]”, o pesquisador colaborador da Faculdade de Educação e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Ensino Superior da UnB, Jacques Velloso, conclui que, em termos de diferenças substantivas no rendimento na universidade, não houve uma sistemática superioridade dos estudantes não-cotistas, embora assim previssem críticos do sistema de reserva de vagas. O artigo de Jacques Velloso apresenta os resultado de pesquisa que analisa o rendimento no curso de três turmas que ingressaram na UnB nos anos de 2004, 2005 e 2006 por meio do vestibular tradicional e com reserva de 20% das vagas para negras e negros.
Maioria nas universidades e a sub-representação
Não apenas no Amazonas, mas no Brasil a inserção de pessoas negras nas universidades está em pro-cesso, mas já vem conquistando algumas vitórias. Neste ano, pela primeira vez, foi registrado que os negros são maioria em Instituições de Ensino Superior (IES). Conforme a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, o país tinha mais de 1,14 milhão de estudantes autodeclarados negros em IES federais, estaduais e/ou municipais, enquanto que os brancos ocupavam 1,05 milhão de vagas. Isso equivale a 50,3% estudantes negros contra 48,2% brancos dos mais de 2,19 milhões de brasileiros matriculados. Apesar do avanço, os números reve-lam que a população negra permanece sub-representada, uma vez que representam 55,8% do total da população brasileira, conforme reportagem do jornal O Globo.
“A radiografia racial do ensino superior público reflete a história de exclusão de negro(a)s em relação ao acesso ao ensino de qualidade. Isso é estrutural na construção histórica, ideológica e epistemológica, na medida em que privilegia, de forma hegemônica, o pensamento europeu e norte-americano branco. Ao mesmo tempo reflete, no olhar para última década, o enfrentamento cotidiano à exclusão estrutural, quer seja por iniciativas de políticas públicas, quer seja por iniciativa de docentes e estudantes”, diz trecho da “Cartilha de Combate ao Racismo” do ANDES--SN, lançada em setembro deste ano.
Em relação às/aos docentes, os números também são baixos. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-xeira (Inep), de 2017, mostram que das/os quase 400 mil professoras e professores do ensino superior público e privado, 62.239 (16%) são negras e negros.
A existência de poucas negras e poucos negros e indígenas na univer-sidade não é uma mera coincidência, mas fruto do racismo estrutural. “Não são só os desarranjos institucionais, envolve comportamentos individuais, processos institucionais, é derivado desse racismo maior, essa forma sistêmica (...) não é tão simples como vamos fazer para enfrentar o racismo, como vamos construir uma sociedade democrática em termos sociais se não mexer nesta estrutura”, comenta Zelma Madeira.
Voz das vítimas
Para além da aplicação de normas, o trabalho de conscientização deve ser contínuo na opinião de Josias Sateré-Mawé. “Os indígenas na universidade são uma realidade, não só os indígenas, mas também outros povos, pessoas que vêm de várias partes que precisam de oportunidade, respeito e equidade”, afirma. Para o mestrando, as discussões nas pesquisas científicas sobre racismo e preconceito contribuem para o acesso à informação e à democratização.
“Na Ufam, nos sentimos invisíveis, só falam conosco no Dia do Índio, fora isso, nos sentimos de lado”, afirma Jesiel. O mestrando alerta que a conscientização é necessária. “É preciso ter mais políticas de combate ao racismo e preconceito contra o diferente. Na atual conjuntura, estamos sendo atacados, não é de agora, mas no atual governo se intensificou”.
A riqueza do conhecimento do ancestral indígena é, muitas vezes, negligenciada na universidade, na opinião de Jesiel. “Penso que o que falta é ouvir, nós não estamos sendo ouvidos e quando isso mudar, tudo em volta mudará, nós ouvimos muito e falamos pouco, mas temos muito a falar, muito a contribuir, a riqueza de nossa cultura é enorme, mas não respeitada”.
Muitas universidades ainda não possuem políticas suficientes de conscientização e combate ao racismo. Para Karen Francis, é é preciso criar uma banca avaliadora de cotas composta por negras, negros e indígenas, e revisar as ementas das disciplinas que, segundo ela, atu-almente são focadas na história e visão branca, invisibilizando outras culturas.
Zelma Madeira avalia que, entre os desafios estão: descontruir essa estrutura, combater a discriminação, promover direitos e res-ponsabilizar os violadores, e garantir uma convivência intercultural nas universidades com esses grupos ét-nicos. “A diferença só é problema quando ela escalona, quando hierar-quiza quem domina e quem é dominado, mas a diferença aberta à reciprocidade, como um grande círculo, só pode demonstrar riqueza e crescimento, é neste sentido que nós precisamos combater o racismo”, afirma.
Diante deste cenário, é tarefa de todas e todos no ambiente acadêmico, expressa na Cartilha de Combate ao Racismo do ANDES-SN: apoiar as comissões de heteroidentificação; lutar pelas políticas de permanência para estudantes cotistas; apoiar acadêmica e emocionalmente docentes, técnicos/as administrativo/as, estu-dantes cotistas, tornando o ambiente mais acolhedor e compreensivo; e efetivar o cumprimento da Lei no 10.639/03 e de toda a legislação antirracista. Lutemos!
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