Data: 10/03/2017
No dia 23 de janeiro, o professor e ativista Guilherme Boulos chegou à Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) para participar de palestra no 36º Congresso do ANDES-SN. Horas antes de subir ao palco, onde dividiria a mesa com Maria Lúcia Fattorelli (coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida), ele reuniu-se com jornalistas de algumas seções sindicais para uma coletiva na qual abordou temas como o direito à cidade e o avanço de medidas conservadoras, com ênfase na PEC 55 e na perseguição aos movimentos sociais, do qual ele próprio acabou se tornando alvo. No dia 17 de janeiro, Boulos foi detido sob a acusação de “desobediência civil” enquanto acompanhava uma reintegração de posse em São Mateus, zona leste de São Paulo. “Quando não há condições de dar uma resposta política aos problemas sociais, a resposta é a repressão, a criminalização”, enfatizou. Participaram da entrevista: Daniel Amorim (ADUA-SS), Bruna Homrich (Sedufsm SSind.), Gabriela Venzke (Adufpel SSind.), Kelvin Melo (Adufrj SSind.) e Renata Maffezoli (ANDES-SN).
Como você observa a atual perseguição aos movimentos sociais e a prisão que você enfrentou recentemente? Algumas pessoas falam que isso está piorando, mas os movimentos sociais sempre foram perseguidos. Você acha que existe uma perseguição e se devemos fazer alguma coisa a respeito?
Evidentemente, não foi o governo Temer que estabeleceu a criminalização dos movimentos sociais no Brasil. É um processo histórico. No próprio governo Dilma enfrentamos a sanção da lei anti-terrorismo, um argumento que será utilizado de forma cabal para criminalizar movimentos sociais. No entanto, acho que a situação está piorando. Depois do golpe parlamentar, observa-se um movimento crescente de criminalização da luta social. Há uma “quebra” do que era garantido juridicamente. Isso tem a ver com o fortalecimento quase imperial do poder judiciário no Brasil, que faz o que quer, passando por cima de direitos constitucionais. A criminalização não é só pancada e repressão. A criminalização é judicialização também. Isso tem a ver com o fato de que temos um governo pautado pela espoliação. Se podemos dizer que, ao longo de treze anos, o PT tentou fazer um pacto de conciliação, o governo Temer não quer conciliação, quer espoliação completa. Quando não há condições de dar uma resposta política aos problemas sociais, a resposta é a repressão, a criminalização. Está ocorrendo um agravamento brutal da crise econômica, o desemprego crescente, programas sociais sendo eliminados. No caso da moradia, isso é evidente. Desde o começo do governo Temer, não houve contratos do Minha Casa Minha Vida. E, ao mesmo tempo, as pessoas que não conseguem pagar aluguel nas grandes cidades vão para a rua. Então, isso gera processo social. A política de espoliação, a política dura, leva ao aumento da criminalização dos movimentos sociais.
Como o MTST avalia a atual organização territorial do país e qual o objetivo do movimento na reorganização da cidade? Se o MTST pudesse, numa situação hipotética, construir uma cidade hoje, no que ela diferiria em relação às cidades em que vivemos?
Temos no Brasil algumas das cidades mais segregadas do mundo, do ponto de vista da separação entre ricos e pobres, entre centro e periferia e o que isso significa do ponto de vista social. A segregação territorial é também uma segregação social, de classe, considerando a oferta de serviços públicos, a formalização da cidade, do acesso a bens culturais. No nosso entendimento, qualquer projeto de reforma urbana deve levar isso em conta. Existe no Brasil uma legislação relativamente avançada, embora tenha problemas, que é o Estatuto das Cidades, o qual cria alguns instrumentos para o enfrentamento da especulação imobiliária, que é a lógica que norteia a cidade. Na lógica de cidade que temos, valorização imobiliária é sinônimo de expulsão social. O que temos visto na última década, a partir do modelo de desenvolvimento econômico adotado no Brasil, baseia-se em capital da construção civil e imobiliário. O estoque de crédito imobiliário no Brasil em 2005 era de R$ 3 bilhões. Em 2014, o estoque de crédito imobiliário chegou a R$ 102 bilhões. Houve um aumento de mais de 3 mil por cento que nos leva a pensar: bom, as pessoas têm crédito. (Por outro lado) isso significa um crescimento da especulação, que levou à colonização de regiões periféricas pelo capital e a expulsão para as regiões periféricas. O Estatuto das Cidades, no entanto, é letra morta. Temos, antes de tudo, a perspectiva de construir um programa mínimo, que passe pela tributação progressiva do solo, pelo programa nacional de construção dos equipamentos públicos em regiões periféricas, um fator decisivo para a especulação. O que torna o Centro mais valorizado que a periferia? É precisamente o fato de o Centro ser o local da oferta de emprego e de serviços. Se você leva serviços públicos para a periferia, você diminui a especulação relativa. Então, deve-se ter um programa massivo, no sentido de levar o centro para a periferia e a periferia para o Centro. Um programa de moradia e reforma urbana passa também pela utilização dos imóveis ociosos. Hoje, o Brasil apresenta quase a mesma quantidade de imóveis ociosos e pessoas sem-teto. Temos cerca de 7 milhões de famílias sem teto e quase 6 milhões de imóveis ociosos no Brasil. Muitos desses imóveis estão em regiões centrais, utilizados para especulação.
Uma das principais pautas da atualidade é aprovação da PEC 55. Que impactos a PEC que traz para a questão da moradia e quais as perspectivas para os próximos vinte anos?
Podemos afirmar com segurança que a PEC 55 foi o maior ataque à Constituição de 1988 e ao que ela apresenta de positivo, que é uma “rede” de proteção social, a capacidade de investimento social e público do estado brasileiro. Nunca tivemos no Brasil um estado de bem-estar social, que fique bem entendido. Vários economistas fizeram levantamentos para analisar os efeitos da PEC caso ela tivesse sido aprovada há vinte anos. Se não me engano, os investimentos em saúde cairiam pela metade, na educação cairia dois terços. Do ponto de vista da moradia, se essa PEC já tivesse sido aprovada – e talvez o agravamento da crise social no Brasil pelos próximos anos pode força-los a ter que rever isso -, nenhum programa de financiamento habitacional popular existiria. E acho que a nossa luta daqui para a frente é levantar a bandeira de um referendo. A PEC foi aprovada no Congresso sem a menor legitimidade social. Então, uma forma de manter nossa bandeira de luta viva neste ano é encampar a realização de um referendo sobre a PEC 55.
Desde o ano passado, várias entidades sindicais e sociais têm afirmado a importância da greve geral. Apesar disso, e levando em conta o acirramento dos ataques do governo Temer, como a PEC 55, esse movimento não foi levado a cabo. Por outro lado, os trabalhadores participaram de ações de êxito, como a Marcha a Brasília. Você acha que esse projeto ainda não foi executado por causa de divergências entre os movimentos ou trata-se de um projeto de longo prazo?
Acho que parte do movimento social brasileiro, durante os treze anos de governo petista, se preocupou com outras coisas em vez de fazer trabalho de base. Houve uma institucionalização muito profunda não só do movimento sindical, mas do conjunto do movimento social. Parte desses movimentos se aliou ao governo, acreditou que o governo pudesse resolver seus problemas e ponto final. Construiu-se um distanciamento com a organização de base, e isso enferruja. A greve geral não é apenas uma decisão. Ela tem de ser construída com a classe trabalhadora do Brasil. O problema é que boa parte da classe trabalhadora ainda não está com essa disposição. É necessário retomar uma capilarização do sindicato com as suas bases que vai permitir essa mobilização. Acredito que a reforma da Previdência pode significar um ponto de ruptura. Nós, do MTST, fomos à periferia para abordar a questão da PEC, mas o assunto é difícil de ser compreendido pela população mais pobre. Era uma longa conversa para as pessoas entenderem. E, além disso, do outro lado existia um discurso midiático pesado do governo Temer, afirmando que é necessário cortar gastos, “você não pode gastar mais do que arrecada”. A reforma da Previdência é diferente. Já virou assunto de boteco. É a aposentadoria que está em jogo, não precisa legendar. O enfrentamento dessa reforma que está prevista para ser votada em junho na Câmara pode ser um ponto de ruptura que permita melhores condições para uma greve geral no Brasil.
O MTST tem uma relação muito forte com a universidade. Você acredita que essa relação está no patamar ideal ou isso poderia ser ampliado? Como você vê essa relação do MTST com a universidade?
Oferecemos programas de extensão universitária em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas acredito que há espaço para ampliação. Na verdade, vamos enfrentar o mesmo terremoto no próximo período. Os professores, estudantes e funcionários da universidade vão enfrentar uma política de desmonte da universidade pública e de ataques a direitos sociais e trabalhistas. O MTST também vai sofrer com esse processo, no que diz respeito ao desmonte de programas habitacionais. É preciso um estreitamento no campo das relações, no campo da formação, construir cursos, levar a universidade até as ocupações e vice-versa. Essa relação, hoje, ainda é uma relação de representação. Dirigentes das universidades vão até as ocupações, mas há poucos projetos de extensão. Temos bastante interesse em expandir (essa relação), colocando não apenas a direção do MTST em contato com a universidade, mas todo o conjunto do movimento e de sua base social.
Fonte: Adua |