Data: 06/02/2017
Por Anderson Vasconcelos
Se você considera desgastante dedicar três décadas da sua vida ao trabalho e, religiosamente, descontar a alíquota referente à Previdência Social, imagine ter que contribuir por mais 19 anos para ter acesso à aposentadoria integral. É esse um dos pontos mais polêmicos do projeto do governo Michel Temer para os trabalhadores brasileiros, com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287, conhecida como a PEC da Reforma da Previdência – mais um item da “agenda regressiva” com impacto para quem mantém a economia do país. A expectativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, é que o texto da PEC seja aprovado até o final de março pela Casa.
Pela “lógica” da PEC, o trabalhador terá que contribuir por 49 anos para ter acesso ao benefício integral e ter no mínimo 65 anos de idade, não importa se homem, se mulher, se político, se trabalhador do campo, da iniciativa privada ou mesmo se servidor público – que continuará se aposentando pelo Regime Próprio (RPPS), mas com regras igualadas às do Regime Geral (RGPS), para aqueles funcionários ingressos no serviço público a partir da instituição do Regime de Previdência Complementar (RPC). De fora, somente os integrantes das Forças Armadas, cujas regras, segundo o governo, serão tratadas posteriormente.
O texto encaminhado ao Congresso no dia 6 de dezembro do ano passado propõe ainda o fim do fator previdenciário e a da fórmula 85/95, que soma idade com tempo de contribuição, para mulheres e homens, respectivamente. Quem tem o chamado “direito adquirido” do benefício não corre nenhum risco com essas alterações: pessoas que já recebem aposentadoria ou pensão ou que já completaram condições de acesso a elas. Aos demais (homens com menos de 50 anos e mulheres com idade inferior a 45), na prática, trata-se da abolição da aposentadoria integral.
O governo sustenta que a PEC faz parte de um conjunto de medidas indispensável para “evitar a quebra do sistema previdenciário brasileiro” e tenta convencer a sociedade de que o brasileiro deve trabalhar mais, basicamente sob duas justificativas: a de que existe um rombo na Previdência – o déficit do RGPS foi de R$ 86 bilhões em 2015 e pode subir para R$ 152 bilhões em 2016, segundo o Ministério da Previdência – e o envelhecimento da população, com aumento da expectativa de vida da população brasileira e de sobrevida dos idosos.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que assina a proposta, afirmou que a PEC “não é uma questão de desejo, mas de necessidade”. Mas, o governo deixa uma “palavra de conforto” em virtude dessa medida impopular: “a aposentadoria nunca será inferior a um salário mínimo”, valor corrigido para R$ 937, em vigor desde 1º de janeiro deste ano. Atualmente mais de 40 milhões de trabalhadores e trabalhadoras têm o mínimo nacional como seu rendimento mensal.
Enquanto a propaganda oficial veiculada na TV, no rádio e nas mídias sociais tenta persuadir milhões de trabalhadores de que as mudanças são necessárias – um dos slogans da campanha diz “Ou reforma a Previdência, ou ela quebra” – especialistas contestam e instituições rechaçam os argumentos usados pelo governo e afirmam que é preciso aumentar a pressão e mobilização popular para barrar um assunto tão caro quanto a PEC 287.
Em nota, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) diz que não existe rombo. “O falso déficit da Previdência é um pretexto para forçar os trabalhadores a pagar maiores contribuições por mais tempo, levando-os a prolongar os anos em atividade. Assim, os benefícios serão pagos por um período menor, mais próximo do final da vida das pessoas”. De acordo com a entidade, o governo não faz os cálculos corretos ao deixar de fora outras receitas que financiam o Sistema de Seguridade Social (Previdência, Assistência e Saúde), como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), entre outras (previstas no artigo 195 da CF). Segundo a Anfip, houve superávit (receitas maiores que despesas) de R$ 24 bilhões em 2015.
Uma das maiores especialistas brasileiras no assunto, a economista e pesquisadora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora Denise Gentil, afirma, categoricamente, em um vídeo publicado nas mídias sociais que o discurso do rombo na previdência é uma falsificação. “Esse governo que diz que existe um rombo de R$ 85 bilhões em 2015, foi o mesmo governo que fez uma renúncia de receitas de R$ 283 bilhões, sendo R$ 153 bilhões da Seguridade Social. Não se pode compreender que um governo diga simultaneamente que tem déficit em um setor e renuncia a receitas desse mesmo setor”, argumenta.
No vídeo, postado pela Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge) e compartilhado mais de 1000 vezes no Facebook, Gentil chama atenção para outro dado que anula o discurso do déficit. “O governo aprovou recentemente a desvinculação das receitas da União, elevando esse percentual de 20% para 30%. Ou seja, hoje o governo pode se apropriar de receitas que constitucionalmente estão vinculadas a gastos com a Seguridade Social e gastá-las em outras despesas que escolher fazer, como o pagamento de juros de dívida pública”, explicou a professora, destacando o caráter contraditório da medida. Para ela, a política adotada pelo governo federal “afronta a inteligência dos brasileiros”. A tese de doutorado da docente tem como título “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005”.
Expectativa de vida
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) também criticou, por meio de nota, a Reforma da Previdência. Para a entidade, a proposta “não condiz com a realidade de toda a população brasileira” e é “inaceitável” uma mudança que “que viole os direitos e garantias fundamentais, piorando as condições de vida dos brasileiros” e ainda sem fazer um “debate sério e qualificado com os trabalhadores e servidores públicos”. A exigência de quase cinco décadas de contribuição para se obter aposentadoria integral, na avaliação da entidade, pode contribuir para ampliar as desigualdades sociais.
Na tentativa de justificar a necessidade do ajuste o governo usa projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em 2013, segundo a qual a participação dos idosos na população total vai aumentar de 10% para 33,7% em 2060. O que não se diz, ainda com base nos dados do IBGE é que a expectativa de vida médio do brasileiro naquele ano era 74,8 anos, número que cai para 72 anos quando considerados o Norte e o Nordeste brasileiros, e para a faixa dos 67 anos, no caso de homens de vários Estados dessas duas regiões. Para esse grupo, em Alagoas, por exemplo, a expectativa é de 65,8 anos. Ou seja, apenas 8 meses a mais que a idade mínima para a aposentadoria.
Assim como a Ajufe, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rechaçou a elevação da idade mínima para o acesso ao benefício. “Parece que o que se quer é que o cidadão não se aposente. Não podemos admitir que a reforma outorgue àqueles que contribuíram com a Previdência por muitos anos o direito a receber somente um sonho”, criticou o presidente da entidade Claudio Lamachia. Para a OAB, o assunto “deve ser objeto de profundo debate com todos os setores envolvidos”.
As centrais sindicais também se sentiram incomodadas com o tema, mesmo aquelas mais próximas do governo Temer, como a Força Sindical e a União Geral dos Trabalhadores (UGT). Elas rejeitam as regras propostas no texto, principalmente a elevada idade mínima para aposentadoria e ainda a ausência de requisitos diferenciados para as mulheres, trabalhadoras que costumam receber salários menores e enfrentar jornadas maiores, considerando as responsabilidades que assumem dentro e fora do mercado de trabalho. Sobre a Reforma da Previdência, a CSP-Conlutas também mandou seu recado: “não vamos aceitar!”. A Coordenação Nacional da Central se reunirá em São Paulo no início de fevereiro parta debater o tema e articular ações estratégias contra a proposta. Uma delas já está em andamento. Trata-se de um vídeo sobre a PEC 287, lançado no início deste mês e por meio do qual a CSP mostra como a proposta vai impactar a vida dos trabalhadores brasileiros.
Impacto que o sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas, Francinézio Amaral avalia como mais incisivo para as camadas menos favorecidas. “Essa proposta de Reforma sinaliza que o governo desconsidera as múltiplas realidades do país. Isso significa dizer que a aposentadoria deixaria de ser um direito, uma vez que ela não estaria mais à disposição de todos os cidadãos, apenas daqueles que cumprirem com essa prerrogativa da idade mínima. E isso claro penaliza aqueles [cidadãos] das classes menos favorecidas”, analisa.
Entenda
De acordo com as regras atuais, o trabalhador pode escolher entre a aposentadoria por idade, com limites de 65 anos para homens e 60 para mulheres, ou por tempo de contribuição, fixados em 35 e 30 anos, respectivamente.
O texto da reforma estabelece que a regra para cálculo do benefício seja 51% da média de todos os salários de contribuição do trabalhador, acrescidos de um ponto percentual por cada ano de contribuição. Considerando que para ter acesso ao benefício, pela proposta, é preciso ter pelo menos 25 anos de contribuição, o valor será então, na prática, 76% da média do salário.
Se a média de salário for R$ 3 mil reais, por exemplo, após 25 anos de contribuição, a média da aposentadoria, aos 65 anos de idade, será R$ 2.280. Se ao chegar à idade da aposentadoria, o trabalhador tiver 35 anos de contribuição, esse valor sobe para R$ 2.580. Para receber os R$ 3 mil, nesse caso, só com 49 anos de contribuição.
Extra, extra
Levantamento feito pela Ong Repórter Brasil – fundada em 2001com o objetivo de fomentar a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos trabalhadores no país – mostra que o governo poderia arrecadar mais de R$ 110 bilhões caso priorizasse outras alternativas para as contas previdenciárias, ao invés de repassar a conta do suposto déficit para o trabalhador. Só com as isenções fiscais o governo tira R$ 55 bilhões da Previdência. Além do fim das isenções, outras opções são investir no combate à sonegação e na redução da informalidade do mercado.
Infográfico: Politize!
Fonte: ADUA |