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  21/06/2024


Docentes debatem desafios da multicampia na Amazônia



Perspectivas e desafios do movimento docente nas IES das/nas Amazônias nortearam diálogos (Crédito: Valéria Brito/ Regional Norte 1) 

 

Sue Anne Cursino

 

Pensar a multicampia para a Amazônia é muito diferente do que em qualquer outra parte do Brasil. Essa foi a síntese do debate ocorrido no 43º Encontro das Seções Sindicais da Regional Norte 1 do ANDES-SN, que centralizou os debates acerca do tema “Multicampia e Fronteira: os desafios das Universidades Públicas nas Amazônias”. A atividade, realizada nos dias 7 e 8 de junho deste ano na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Parintins (AM), reuniu docentes, discentes e membros de movimentos sociais.

 

O encontro partiu da necessidade de aprofundar os debates sobre as diferentes realidades vividas nas universidades federais, estaduais e institutos federais presentes nos territórios multicampia e fronteiriços do Brasil com demais países da América Latina.

 

Docentes do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima - que atuam nas seções sindicais ADUA, Adunir, Adufac, Sesduf-RR, Sinduerr e Sind-UEA  - que integram a Regional Norte 1, abordaram as particularidades e dificuldades enfrentadas pelas instituições, destacando a relação entre organização sindical, atuação docente e multicampia.

 

A precarização do trabalho, a falta de infraestrutura e a dificuldade de fixação do corpo técnico, docente e discente, além de problemas com autonomia, financiamento e despolitização, foram apontados como principais desafios. Foi reafirmada a defesa de políticas de acesso e permanência de estudantes indígenas e quilombolas na Amazônia.

 

 Docentes da UEA, UFPA, Unir, Ifam e Ufam realizaram a conferência “Multicampia e Fronteira: os desafios das Universidades Públicas nas Amazônias”  (Crédito: Sue Anne Cursino/Ascom ADUA) 

 

Tal realidade, também é vivida em diferentes prismas por cerca de 88 universidades e institutos federais que enfrentam desafios da multicampia. Assim, urge um diálogo constante para buscar responder questões como a que foi feita pela docente da Sindurca, Zuleide Queiroz: “No meio de tanta diversidade no Brasil, como é que a gente se une para lutar?”

 

Multicampia e a Organização Sindical

 

Entre as falas nas mesas, conferências, reuniões e plenárias que ocorreram nos dois dias de encontro docente, foi consenso o discurso de que na relação entre multicampia e organização sindical há uma dificuldade de enraizamento das seções sindicais e ao mesmo tempo uma necessidade de um chamado para a nacionalização da luta.

 

Esse é um desafio até mesmo em universidades como a Universidade Federal do Acre (Ufac), onde há estrutura do ponto de vista administrativo, como compartilhou a docente Letícia Mamed, presidente da Adufac e 2ª secretária da Regional Norte 1. 

 

Com um campus na capital Rio Branco e outro em Cruzeiro do Sul, no extremo oposto da capital, a Ufac é considerada uma universidade relativamente autônoma, com corpo docente devidamente distribuído e demandas didático-administrativas contempladas, mas que enfrenta dificuldade de circulação e a participação em eventos científicos regionais e nacionais, devida às distâncias e ao alto custo de passagens aéreas. “É necessário que tenhamos uma maior integração e diálogo, exatamente para que a gente possa construir uma política de universidade una, o que não há no momento, para que todos possam expor suas questões e garantir unidade na construção da luta. Esse é um desafio do ponto de vista organizativo e que precisamos encarar”, afirmou Letícia.

 

Já na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), as principais dificuldades envolvem a necessidade de autonomia administrativa, didático-científica, orçamentária e patrimonial. O professor André Melo (Sind-UEA) criticou a dificuldade de financiamento de projetos, repudiando a “sedução por meio de bolsas”, o que aponta como risco para a autonomia docente. “Só é digno de financiamento projetos patenteáveis?”, questionou.

 

Mesa debateu panorama, lutas e expectativas das universidades estaduais (Crédito: Sue Anne Cursino/ Ascom ADUA) 

 

A necessidade de transformar as universidades em instituições autônomas, abertas e inclusivas também foi destacada pela docente da UEA, Gleidys Maia, como crucial para superar a precarização do trabalho docente e a falta de estrutura das instituições. Ela relatou que alguns núcleos não possuem estrutura adequada para funcionamento. “Apesar da UEA ser nova, ela já está com ‘necrose’. Ela é uma universidade extremamente rica em pesquisa, ensino, extensão. Em cada uma dessas paragens, desses portos do Amazonas, as pessoas contribuem com saberes para essa universidade, mas ao mesmo tempo a gente vê que a resposta da universidade para a sociedade é mínima, porque a universidade se fecha”, afirmou a docente, acrescentando a crítica às condições de precariedade de alguns núcleos da instituição. “Os professores estão em todos os lugares, mas esses professores trabalham em condições precárias. Tem centros da UEA que possuem uma certa estrutura, como Tabatinga, Tefé, Itacoatiara, Parintins, Maués. Porém, em alguns Núcleos não têm praticamente nada. Não têm biblioteca, é um depósito”. Nessas condições, a docente acredita que não tem como a categoria criar relações com os lugares onde atuam. “Não há compromisso nenhum com as comunidades. Como é que eles vão falar de política, de politização na formação de professores, se eles [docentes] mesmos não têm isso?”, afirmou Gleidys Maia.

 

Distante 35 quilômetros da capital Boa Vista (RR), o campus Murupu, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), apresenta dificuldades com ausência de internet e precarização nos meios de transporte. As informações foram compartilhadas pelo docente Antônio Carlos Júnior, presidente da SESDUF-RR e que atua no campus de Boa Vista. “A pauta de reivindicação lá é exatamente a questão de um aumento do auxílio transporte pra diminuir um pouco os gastos que eles têm com deslocamento”.

 

Como uma universidade que está na fronteira, a UFRR também enfrenta dificuldade para realização de atividades. “Pela universidade nós só conseguimos chegar até os municípios que fazem fronteira que, no caso, são Pacaraima, que faz fronteira com a Venezuela, e Bonfim, que faz fronteira com a Guiana. De lá em diante nós temos que ter recursos próprios para adentrar esses territórios, visto que não há autorização por parte da universidade para que nós utilizemos o transporte para nos deslocarmos até lá. O que dificulta muito a questão de trabalhos de campo e desenvolvimento de atividades, ou seja, sempre tem que sair do bolso do professor, ou do bolso do discente. Então, é uma fronteira que a gente subutiliza no quesito ensino, pesquisa e extensão”, afirmou Antonio, reiterando que avalia como positiva a visibilidade que o tema da multicampia ganha nos espaços de discussão do ANDES-SN, “considerando as dificuldades que giram em torno da questão financeira, mas também de levar para a sociedade a importância de ter essas universidades em áreas de fronteira”.

 

Docentes, estudantes e membros de movimentos sociais participaram do encontro  (Crédito: Sue Anne Cursino/Ascom ADUA) 

 

O orçamento também foi abordado na avaliação do docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), José Eurico de Souza, diretor do Sinasefe-AM. “Aqui nós temos os custos amazônicos. Um aluno do interior não tem o mesmo custo de um aluno da capital. As nossas estradas são nossos rios. Nós temos que ter o tratamento diferenciado pela nossa gestão, e eu não estou falando só da reitoria, estou falando do MEC, que precisa entender que as universidades e institutos da Amazônia têm que ter tratamento diferenciado porque são diferenciados na curricularização e nas questões orçamentárias”.

 

A docente Marilsa Miranda, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), onde possui oito campi, sendo um na capital e sete no interior, incluindo um campus na fronteira com a Bolívia, ressaltou que alguns campi foram ampliados a partir da expansão planejada da universidade, mas outros foram criados a partir de interesses eleitoreiros e latifundiários, com cursos que nem sempre correspondem a vontade da população local. Alguns foram criados inclusive no contexto do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), e estão atualmente sem infraestrutura necessária. “O maior problema que temos em relação à atuação docente é a precarização da infraestrutura para efetivação das atividades de ensino, pesquisa e extensão, o que coloca os professores em uma fragilidade porque não conseguem desenvolver suas atividades como gostariam, sem garantir minimamente seu trabalho e adoecendo”, afirmou a docente, que também é presidente da Adunir.

 

A falta de estrutura em laboratórios para desenvolvimento pedagógico das turmas de licenciaturas, ausência de hospital veterinário e outros laboratórios para o curso de Medicina Veterinária são alguns dos problemas de estrutura para o funcionamento dos cursos na Unir. Segundo Marilsa, há um agravante: “quem reclama dessas condições sofre assédio moral”. Isso ocorre para além das dificuldades de estrutura nos municípios, como, por exemplo, a dificuldade de acesso ao atendimento médico, tendo que se deslocar para a capital para fazer exames, consultas e tratamentos. Realidade também compartilhada por outras(os) docentes. José Eurico chegou a relatar a dificuldade em comprar alimentos quando atuou em São Gabriel da Cachoeira: “Precisávamos fazer uma ‘cooperativa’, comprar os alimentos em Manaus e dividir entre a gente”.

 

Esvaziamento

 

A realidade compartilhada no encontro influencia diretamente na fixação do corpo técnico, docente e discente e desafia a continuidade e qualidade do ensino nos municípios. O esvaziamento dos cursos por parte das(os) discentes e a crescente adesão às universidades privadas foram apontadas(os) como consequências diretas dessa precarização, como foi compartilhado pelo professor Aldair Andrade (ADUA), docente da Ufam em Manaus e com experiência de atuação nos campi da Ufam em Humaitá e Parintins. 

 

O docente relembrou como foi implantado o projeto multicampia da Ufam, que atualmente possui 6 campi, localizados em Manaus, Parintins, Humaitá, Coari, Itacoatiara e Benjamin Constant, e destacou o atual crescimento das universidades privadas como um problema, em contraste com o trancamento de cursos e a falta de adesão das(os) discentes na Ufam. “Nos anos 2000 tinha-se uma perspectiva desenvolvimentista, de formação para o mercado de trabalho, e problemas com migração e retenção. A ideia era formar polos para que as pessoas não fossem para Manaus, que já estava estourada.  E com a retomada da discussão vemos agora um processo de esvaziamento dos cursos, que não estão conseguindo se sustentar porque não conseguem ter aderência. Um exemplo comum é que a curva de ingresso nas universidades privadas é ascendente e das universidades públicas é descendente. Então, temos um problema aí”, afirmou Andrade.

 

Também docente da Ufam, o professor Lucas Milhomens, que atua no ICSEZ/Parintins, levantou a reflexão de que existe uma ausência de “avaliação séria sobre o Reuni” em seus mais de  15 anos de implantação na Ufam. Ele também apontou que existe uma visão excludente em relação a quem atua nos campi do interior, que são vistos como “docentes de segunda categoria”. Milhomens defende que é preciso haver planejamento de ações concretas para pensar soluções para a diversidade de problemas e que haja maior solidariedade do ANDES-SN como espaço de luta. “Fazemos pesquisa, orientação, participamos de eventos, com anos de contribuição, mas quem está no interior é visto como segunda categoria”, criticou.

 

Este posicionamento também é corroborado pela professora da Ufam, Ana Cláudia Nogueira, que chamou a atenção para o reconhecimento de que a expansão das universidades e dos institutos federais melhorou o índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios, e em alguns municípios da Amazônia são a única presença do Estado, mas que existe um processo de exclusão dentro da própria universidade.  “A gente tem um processo de colonização dentro da universidade, que olha para o interior como um espaço de segunda classe. E nós não estamos preparados para esse debate”, afirmou.

 

GT Multicampia e Fronteira

 

Este novo capítulo de diálogos atende as demandas de encontros docentes anteriores e resulta dos últimos debates com a criação do GT de Multicampia e Fronteira, aprovado no 42º Congresso do ANDES-SN, realizado de 6 de fevereiro a 1º de março de 2024, em Fortaleza (Ceará).

 

O grande desafio desse grupo de trabalho é articular debates e construir políticas inclusivas e abrangentes para a expansão das instituições de ensino superior. A luta por direitos adicionais de indenização educacional de fronteira e de localidade de difícil fixação para docentes e técnicos administrativos tem sido apontada como crucial para que a categoria docente tenha os mesmos direitos de outros(as) profissionais do funcionalismo público que atuam em áreas fronteiriças.

 

Em 2019, o debate sobre o tema ganhou força com o I Seminário de Multicampia e Fronteira, na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), em Foz do Iguaçu.

 

Na primeira reunião do GT, realizada no dia 16 de junho, na sede do Sindicato Nacional, em Brasília (DF), docentes também compartilharam desafios enfrentados, reafirmando a importância desse espaço para a construção de políticas sindicais. E como resultado desse diálogo foi produzido uma síntese para compor um Texto de Resolução (TR) para o 67º Conad, que será realizado de 26 a 28 de julho em Belo Horizonte (MG).

 

Entre os pontos estão a realização do II Seminário de Multicampia e Fronteira no segundo semestre de 2024, produção de materiais de comunicação; a sugestão de que a próxima edição da Revista Universidade e Sociedade (U&S) trate do tema da Multicampia e Fronteira; um levantamento nacional sobre as universidades e institutos multicampi e em regiões de fronteira; pesquisas sobre as condições de trabalho dos docentes e da organização sindical e a reafirmação da luta pelos direitos de adicionais de indenização educacional de fronteira e de localidade de difícil fixação.

 

Além da ADUA, outras cinco seções sindicais do ANDES-SN constituem o GT Multicampia e Fronteira, até o momento. São elas: Adufpa, Aprofurg, Adufac, Sesunila e Sesduf-RR.

 

Docentes foram de barco até Parintins para vivenciar a realidade de deslocamento na Amazônia (Crédito: Sue Anne Cursino/Ascom ADUA) 

 

Na opinião de Ana Lúcia Gomes, membro da coordenação do GT Multicampia, é preciso estar nos diversos locais para conhecer as diferentes realidades, e saber o que docentes, estudantes e TAEs vivenciam nos seus cotidianos e nas atividades acadêmicas para que se possa discutir o tema com mais propriedade. “Neste sentido, o próximo evento da Regional Norte 1 está previsto para ser realizado junto com o encontro da Regional Norte 2, em agosto de 2024, em Belém (PA), com uma dimensão maior e diferenciada, em conjunto com o Grupo de Trabalho de Política Agrária, Urbana e Ambiental (GTPAUA) e um seminário integral deliberado pelo ANDES-SN”.



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