Coragem e criticidades marcaram as fa las de Ana Maria Estevão e Ivânia Vieira
Sue Anne Cursino
Era uma vez... Não! Esse início de estória não faz jus ao que se passou no Presídio Tiradentes, em São Paulo, onde cerca de 150 mulheres foram presas, em diferentes momentos, por atuarem econtra a Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985).
O nome “Torre das Donzelas”, como foi denominada a ala feminina do presídio pelos próprios companheiros de luta, não refletia o perfil guerreiro das presas políticas que ali estiveram: estudantes, historiadoras, médicas, assistentes sociais, professoras e artistas. Elas não viviam em um castelo, mas construíram uma fortaleza na alma para superar o terror da perseguição e da tortura física e mental que naquele período viveram.
Essa história, agora sim com “h”, norteou o tema da sessão de cinema “Resiliência Feminina em Tempos de Chumbo”, realizada no auditório da ADUA no dia 15 de maio, como parte da programação de um projeto de “descomemoração” dos 60 anos do golpe no país.
Desta vez foi exibido o documentário brasileiro “Torre das Donzelas”, filmado em 2018 e dirigido por Susanna Lira, onde a narrativa mostra depoimentos de mulheres que lutaram contra o regime militar, sendo presas no presídio, que foi demolido em 1972, em uma “concreta”, porém falida tentativa de apagamento, pois a memória fica e é resgatada como ato de luta pela liberdade e lucidez política.
Em tempos de novas tentativas de golpe contra a democracia, essa memória precisa ser mais forte do que a única parte original que restou do presídio, o portal de pedra.
Para compartilhar da memória de quem viveu os anos de chumbo, duas mulheres foram convidadas para comentar o filme: Ana Maria Ramos Estevão, docente aposentada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e a jornalista e docente da Ufam, Ivânia Vieira. Ambas vigiadas pela ditadura.
Em São Paulo, Ana Maria foi uma das presas políticas no Presídio Tiradentes; e em Manaus, Ivânia integrava o movimento estudantil. Atualmente, as duas continuam na militância, sem perder a alegria, a coragem, a criticidade e o olhar otimista por um Brasil diferente, onde os direitos humanos sejam respeitados e os interesses coletivos norteiem a sociedade.
Entre as falas de Ana Maria Estevão, duas marcaram aquela tarde de conversa. A primeira é o questionamento: “A ditadura acabou?” Ela mesma responde com ênfase de que deve fazer parte da pauta do dia lembrar que a violência e a tortura no Brasil são “políticas de Estado” que vêm desde o período colonial, é uma violência estrutural, assim como é o racismo. “Antes de existirem presos políticos, a violência já existia contra indígenas, negros e contra qualquer um que se opunha ao governo”, ressaltou Ana Maria, chamando atenção também para a violência que atinge cotidianamente mulheres, LGBTQIAP+, povo negro, indígenas, crianças. “Agora mesmo, quantos atos de violências estão acontecendo?”, questionou.
A segunda posição de destaque de Ana Maria é sobre as mulheres que foram presas políticas: “Ali não havia nenhuma donzela, como se a gente estivesse lá, sentadas, em posição de espera por um príncipe encantado em um cavalo para nos resgatar. Pelo contrário! Nós estávamos lá tentando resgatar a sociedade brasileira, junto com nossos companheiros”.
O filme mostra uma parte do cotidiano dessas mulheres, relata a saudade que sentiam dos familiares, as aulas que faziam umas para outras, as divisões das tarefas, o medo e o silêncio que guardavam sobre os momentos de tortura. Ainda assim, elas procuravam construir um clima fraterno. “As meninas eram extremamente solidárias. Até para a colega que estava grávida foi montado todo um esquema. Tinha caminha, o enxovalzinho, a amiga médica para fazer o parto, tudo estava pronto. Infelizmente ela foi para o hospital militar e não voltou para a Torre”.
A professora Ivânia Vieira concordou com o posicionamento de Ana Maria, ressaltado que se vive ainda hoje “as tragédias em decorrência da ação dos ‘filhotes da ditadura’ que agem executando o projeto de país que eles querem”.
Ivânia relembrou sua experiência quando teve a vida monitorada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). “Não fui presa, nem torturada, mas assim como também o professor Tomzé, e outros colegas, tive a minha vida vigiada. E só depois, por uma ação da ADUA, os documentos chegam nas nossas mãos mostrando que nossos passos eram monitorados”.
A docente alertou que o silenciamento dessa história é arquitetado para promover o seu esquecimento. Neste sentido, agradeceu ao que chamou de “teimosia amorosa” do professor Tomzé em realizar a atividades” que põe os tempos de chumbo na centralidade do debate. “Esse filme trata de resiliência, memória e persistência. Talvez no cotidiano de nossas vidas não levemos muito adiante o que significam essas palavras. A importância da memória, da resiliência, muito cara aos povos indígenas, a própria Amazônia. E foi feito numa composição, de quem escreveu e dirigiu esse filme, muito amorosa, num desenho poético, com muito cuidado para lidar com feridas tamanhas, que nos leva a chorar, a sorrir, nos inquietar em uma série de emoções”.
No sentido de enfatizar a necessidade de ação, a docente concluiu que aquela atividade era um lugar privilegiado para pensar, sentir e agir ou conformar. “Eu espero que aqui nós tenhamos trabalhado na perspectiva de nós não nos conformarmos, de não esquecermos”, afirmou.
O professor Marcelo Seráfico comentou sobre a ameaça da volta da ditadura institucional, destacando a violência presente na sociedade, inclusive dentro das universidades. “A gente tem que se perguntar: ‘Por que o tema da ditadura volta o tempo todo? É um problema da ditadura militar apenas? Ou estamos diante de uma forma de sociabilidade que predispõe a possibilidade da volta da institucionalização da violência e do autoritarismo?’”.
Docentes e estudantes da Ufam participaram da sessão de cinema na ADUA
Após a exibição do filme e da participação das professoras, os aplausos foram os mais espontâneos, acompanhados de rostos expressivos que espelhavam a admiração pela oportunidade de estarem ali diante de duas mulheres aguerridas, que regaram mais uma vez as sementes de luta pela vida, respeito e liberdade.
O professor Tomzé Costa, declarou que existe a necessidade de pressionar o governo pela volta da Comissão da Verdade e da Anistia, por Memória e Verdade e de Reparação. “Eu acho que neste ano, no qual o governo não quis mostrar nada sobre a Ditadura Empresarial-Militar no Brasil, a ADUA presta essa atenção, mostrando como era esse regime, porque até ano passado existiam pessoas pedindo a volta da Ditadura sem saber como era esse horror. E a partir dessas produções, e muitas outras, é possível ver várias faces da Ditadura”.
A próxima edição desse projeto será no dia 7 de junho, em Parintins (AM), durante o 43º Encontro das Seções Sindicais da Regional Norte 1 do ANDES-SN, com a exibição do documentário “Cidadão Boilesen” de Chaim Litewski (2009), que retrata a participação de empresários na repressão durante a ditadura.
Fotos: Sue Anne Cursino/ Ascom ADUA
|