Daisy Melo
Universidades, estudantes e docentes foram protagonistas da resistência à Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985) brasileira. Como forma de rememorar essa luta, a ADUA realizou, no dia 23 de abril, a exibição do filme “Barra 68 – Sem perder a ternura” (2000), sobre a invasão militar à Universidade de Brasília (UnB). Parte da programação especial da Seção Sindical sobre o tema, a sessão de cinema foi seguida de comentários de José Seráfico de Assis Carvalho, destaque no enfrentamento ao regime quando estudante de Direito no Pará.
O documentário de Vladimir Carvalho (2000) narra a perseguição à UnB do Golpe até 1968, um dos piores momentos da Ditadura. Em 29 de agosto daquele ano militares do Exército e da polícia invadiram com fuzis e metralhadoras o campus, atiraram, lançaram bombas de gás lacrimogênio, detiveram dezenas de estudantes na quadra de basquete e prenderam alguns deles. Um dos discentes chegou a levar um tiro na cabeça e sobreviveu.
Para Seráfico, hoje docente aposentado da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a maior parte do filme revela o clima de ódio de que as autoridades se tomaram contra a educação e a cultura. “São pontuais muitas das cenas mostradas no filme, pelo que têm de episódicas, tanto do que tem simbólicas. Cenas que revelam qual era a disposição da Ditadura com relação à educação brasileira. É o cerceamento à liberdade, é o atrelamento à ordem dos quartéis. A resistência estudantil ameaçada e acossada por homens fardados e armados com dinheiro público”, comenta.
Entre os depoimentos exibidos no filme está o da família de Honestino Guimarães, estudante de Geologia e presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (Feub), um dos principais alvos da operação por ser considerada uma entidade “subversiva”. Na invasão da UnB em 1968, Honestino foi espancado e preso. Cinco anos depois, o líder estudantil, que chegou a ser presidente da União dos Estudantes (UNE), foi tido como “desaparecido”.
“Honestino foi apenas um dentre tantos outros que perderam a vida em nome de um ideal que, infelizmente, parece excluído do repertório de conduta dos sobreviventes à tragédia de 1964 e as suas consequências. Por isso, caberá sempre insistir que sem memória a história não é levada ao conhecimento, da lembrança há de surgir a rejeição, o asco, o repúdio a toda e qualquer tentativa de voltar ao passado inglório”, diz Seráfico.
A memória do jornalista Thomaz Antônio da Silva Meirelles, também “desaparecido” político, é evocada por Seráfico. “Não se esqueça, por oportuno, que do também estudante Thomazinho Meirelles, amazonense, foi dado fim. Não sei se houve, nem qual grau de mobilização pedindo esclarecimentos sobre esse jovem desaparecido (...) No entanto, há um amazonense tão vítima quanto foram os outros. É um símbolo. Eu espero que o espírito de Thomazinho renasça.”
Thomaz foi um jornalista e sociólogo parintinense filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e à Aliança Nacional Libertadora (ANL). De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ele “foi preso aos 36 anos de idade, no dia 7 de maio de 1974, no bairro do Leblon no Rio de Janeiro. Dessa data em diante nunca mais foi visto”.
Resistência na Amazônia
Assim como muitas(os) outras(os), José Seráfico foi um dos estudantes a enfrentar a Ditadura e comenta que é muito comum encontrar relatos do Golpe Militar em outras regiões do país, mas raramente na região amazônica. Porém faz questão de ressaltar: “houve uma resistência efetiva, transparente e muito persistente em Belém do Pará” (...) sobretudo de universitários paraenses nas lutas políticas de forma ativa e altiva, permanente e consciente”.
Além de comentar sobre o filme, o professor narrou um dos momentos marcantes de sua atuação quando era um estudante da Universidade Federal do Pará (UFPA): a invasão do Exército à União Acadêmica Paraense (UAP), na noite de 1º de abril de 1964. Depois de cercar o local com soldados armados com metralhadoras, o Coronel José Lopes de Oliveira desferiu uma “bofetada” em Seráfico. Após o episódio, o universitário foi mantido preso por dois meses. O “problema” para os militares era o teor dos denunciantes manifestos e de edições do jornal da UAP, dos quais Seráfico era o principal responsável. Ainda na Ditadura, foi julgado pelo Supremo Tribunal Militar (STM) e inocentado.
Da esquerda para a direita: Leonildes Silva, Paes Loureiro, Ronaldo Barata, José Seráfico, Félix Oliveira, Pedro Portugal, Joao Drummond e Nélson Figueiredo no Encontro Nacional de Estudantes de Direito (Enad), em 1962, em Recife (PE)
Outros episódios vividos por José Seráfico e por sete de seus colegas (André Nunes, Isodoro Alves, João de Jesus Paz Loureiro, Pedro Galvão, Roberto Cortez, Ronaldo Barata e Ruy Barata) estão contidos no livro “1964 – Relatos subversivos. Os estudantes e o golpe no Pará”, escrito por eles e lançado em 2004. Suas memórias sobre esse período da história também estão presentes na matéria “ADUA e docentes foram alvo de investigação durante a Ditadura”, publicada em 2019 no Boletim 16 da Seção Sindical.
Dando prosseguimento a programação relativa à Ditadura, a ADUA irá realizar a sessão “Resiliência feminina em tempos de chumbo”, com exibição do documentário “Torre das Donzelas” (2018), de Susanna Lira. A atividade terá a participação da docente aposentada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ana Maria Ramos Estevão, que viveu o contexto narrado no filme, e da docente da Ufam, Ivânia Vieira.
Autorretrato*
José Seráfico
A mão direita sinistra
bate-me na cara:
- dói
Adolescentes esperanças
estradas do amanhã
- rói
Sentimentos solidários
generosos sonhos
- mói
À esquerda
minha mão direita
- reconstrói
*Poema inspirado em fato ocorrido quando da invasão da sede da União Acadêmica Paraense (UAP), a bofetada que o comandante da invasão, Coronel José Lopes de Oliveira, desferiu no autor, na noite de 01 de abril de 1964. O episódio está contado em vários relatos (livros, artigos, TCCs, dissertações de mestrado etc.), a partir da obra coletiva Relatos Subversivos - Os estudantes e o golpe 1964 no Pará. (1ª edição, Editora dos Autores, 2004; 2ª ed. Samauma Editoral, Belém, PA, 2014).
Fotos: Sue Anne Cursino e Arquivo de José Seráfico
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