Para Geovana Lunardi as pesquisas em educação têm muito a dizer, mas não são ouvidas. Foto: Sue Anne Cursino/Ascom ADUA
A Amazônia foi palco de um dos maiores encontros de pesquisadores e pesquisadoras em Educação do país entre os dias 22 e 27 de outubro de 2023.
Sob a nuvem de fumaça que encobre Manaus desde setembro e o calor intensificado pela forte estiagem que assola a região, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) sediaram a 41ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), com o tema “Educação e Equidade: bases para Amar-zonizar e reconstruir o país”.
Durante o evento, mais de duas mil pessoas, incluindo estudantes e docentes do Norte, de outros estados do Brasil e de outros países da América Latina, compartilharam a diversidade de sotaques e traços culturais diversos em debates em grupos temáticos, lançamentos de livros, palestras, mostras de filmes e exposições que enriqueceram a programação científica.
Entre as deliberações da Assembleia, no dia 26, estiveram a aprovação de moção em defesa do meio ambiente e pela revogação do “Novo Ensino Médio”, além de um feito histórico: a criação do Grupo de Estudos Educação e Povos Indígenas.
Foi nesse rico contexto da reunião bianual da ANPEd que a ADUA conversou com a presidente da entidade, Geovana Lunardi, que expressou alegria em trazer o evento da entidade pela primeira vez para a Amazônia, cravando importante marco na história da associação. Confira a seguir.
ADUA: O Amazonas sedia a 41ª Reunião da ANPEd que tem como tema “Educação e Equidade: bases para Amar-zonizar e reconstruir o país”, o que significa esse tema?
Geovana: Discutimos esse tema com os 24 Grupos de Trabalho e Grupos de Estudo em Educação que compõe a ANPEd entendendo que as perspectivas da pesquisa em educação do Amazonas e do Norte podem significar de algum modo uma outra forma de entender as problemáticas com as quais a gente vive no país. O desejo era de que pudéssemos encontrar aqui olhares diferenciados, plurais, perspectivas distintas de fazer pesquisa e problemáticas diferenciadas.
Nesse sentido, há dois anos estávamos pensando o tema, pois a organização nacional já começa assim que finalizamos uma reunião. Por exemplo, nós já vamos sair daqui de Manaus com a definição do local de onde será a ANPEd 2025 [que será realizada em João Pessoa, na Universidade Federal da Paraíba, conforme deliberação em Assembleia no dia 26 de outubro]. Nós saímos de 2021 com a definição que a ANPEd seria em Manaus.
A gente construiu esse tema no começo de 2022, quando estávamos num momento de embate político muito difícil no Brasil. Com um processo de eleição que estava sendo atacada, com o risco eminente de continuar com o governo de ultradireita. Havia ali um sentido genuíno diante de um momento que nós precisávamos reconstruir o país, e fazer esse processo de reconstrução pela pesquisa e educação no estado do Amazonas, no coração da floresta.
Esse é um momento muito propício, muito poético e que bom que a gente previu tudo isso e deu tudo certo, pois estamos aqui com esse sentimento de reconstrução do país e de discussão sobre as próprias políticas de equidade, porque aqui, no contato com a população, com as pautas indígenas, da justiça ambiental e climática, a gente consegue perceber a problemática de tudo isso que precisa ser enfrentado.
ADUA: Como você percebe que esse tema tem fluído, quais seus desdobramentos nesses dias de evento?
Geovana: Eu acho que a principal questão que tem aparecido em vários debates é uma redefinição da própria ideia de equidade. O quanto só pensar na equidade não é suficiente quando a gente não consegue encarar as distinções dos territórios.
Eu fiquei muito impactada quando fui chamada por um grupo do Fórum de discussão de Educação Escolar Indígena, e eles entregaram uma carta com um conjunto de reivindicações, e o aluno de graduação que leu a carta fez a leitura com muita dificuldade, porque ele aprendeu a falar, escrever e ler português na graduação.
Isso mostra o quanto não é só uma questão de ter cotas, de colocar as pessoas nestes lugares, mas sim de construir um conjunto de políticas para fazer com que a gente consiga inclusive mudar a forma como a gente entende essa presença. E eu acredito que o evento traz muitos elementos nesse sentido.
Docentes e estudantes entregaram carta à ANPEd reivindicando criação de Grupo de Estudos de Educação Escolar Indígena. Foto: Divulgação
ADUA: O ANDES-SN e a ADUA têm criticado projetos implementados pelo MEC na educação brasileira, como a Reforma do “Novo Ensino Médio” e a Base Nacional Comum (BNC) para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica. Qual o posicionamento da ANPEd sobre essas pautas e como a entidade tem atuado frente a essa realidade?
Geovana: Desde a Reforma do Ensino Médio encaminhada por decreto no governo Temer, a ANPEd, junto com o conjunto de sociedades científicas, sempre se posicionou contrária ao Novo Ensino Médio.
No momento de transição para este novo governo já estávamos contribuindo com o debate no GT de Transição, e essas duas pautas estavam lá presentes: tanto a do Ensino Médio, quanto a questão da BNC-Formação.
Nós realizamos cinco seminários regionais em todas as regiões do país: Sul, Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, com pesquisadores, apresentando um panorama sobre o Novo Ensino Médio. E os seminários foram riquíssimos, a gente conseguiu mostrar e construir um documento muito sólido, apontando toda a fragilidade dessa proposta, toda a sua problemática e que a gente precisa mesmo constituir uma nova política de Ensino Médio para o Brasil.
Nós tivemos a chance de apresentar esse documento para o ministro da Educação, Camilo Santana, que nos recebeu e discutimos a posição dos pesquisadores, e o debate segue na reunião da ANPEd.
Nós chamamos o MEC [Ministério da Eeucação] para fazer parte de um diálogo com os pesquisadores a respeito do Ensino Médio e a posição da ANPEd sempre foi a de revogação, apontando todos os limites e retrocessos que estão dentro dessa proposta.
O mesmo ocorre com relação a BNC-Formação. A gente tem uma posição histórica com relação a isso. Desde 2015, na ANPEd que ocorreu em Florianópolis, a Assembleia se posicionou contrária a BNCC, porque nós já entendíamos que a constituição de uma proposição de um currículo comum iria trazer um conjunto de outras políticas que trariam muito malefícios pra educação brasileira.
Desde 2015 a ANPEd tem uma posição contrária à BNCC, que depois virou BNC-Formação, com a qual a gente tem brigado pela revogação da resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) 02/2019, e pedindo a retomada da CNE 02/2015. No caso específico da formação muito se tem articulado com as sociedades científicas que são do campo da formação como é o caso da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), então isso também é uma coisa que a ANPEd constrói, essa parceria entre sociedades científicas pra poder criar os seus posicionamentos.
ADUA: No dia 24 de outubro o Senado aprovou a revisão da Lei de Cotas para universidades federais e institutos. Qual a avaliação da ANPEd sobre a Lei de Cotas, considerando as novidades que a revisão trouxe? O que falar sobre essa lei considerando a desigualdade social e econômica do país?
Geovana: A ANPEd tem uma posição histórica favorável a todas as políticas redistributivas, políticas de reparação, e a gente entende que as políticas de cotas estão dentro desse conjunto.
Elas não são a solução, são políticas que precisam ser provisórias, mas ao mesmo tempo necessárias para que se possa avançar no país em alguns aspectos. O que a gente percebe é o quanto ainda necessitamos das políticas de cotas para mudar inclusive a cara da pós-graduação e da pesquisa.
A associação já avançou muito nesse sentido. Hoje, pelos corredores, já conseguimos ver os pesquisadores indígenas e das diferentes regiões do país, mas ainda é um fenômeno que precisa ser muito desenvolvido para chegar na pós-graduação. Quanto mais alto nível, mais o funil vai ficando apertado e mais dificuldades de ter pesquisadores de grupos que foram historicamente excluídos do processo educacional.
No Brasil já avançamos muito na questão da graduação, mas ainda não é suficiente, precisamos continuar na pós-graduação e nos espaços de trabalho. Porque essa questão da desigualdade não é algo que muda do dia para a noite, não é algo que muda em duas décadas.
É preciso de todo um processo de reconstrução e democratização da universidade, do ensino superior, da pós-graduação brasileira.
Talvez isso aqui no Norte não seja tão forte, mas eu costumo sempre dar um exemplo: eu sou professora de pós-graduação, de mestrado e doutorado, há 17 anos, e meu primeiro doutorando negro defendeu sua tese há um mês, e ele é angolano, aluno do continente africano com bolsa do programa apoiado pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior].
Eu sou de Santa Catarina, um estado que historicamente é branco, com pouquíssima representação negra, e uma representação negra que não consegue chegar na pós-graduação. Agora, na última seleção, eu tive meus dois primeiros orientandos de doutorados e dois de mestrado, que são brasileiros e negros, após o programa onde atuo adotar as políticas afirmativas. Ou seja, sou uma pessoa que venho a quase duas décadas formando, e nunca com a presença negra, e isso para falar do recorte racial.
Agora vamos para a deficiência, por exemplo. Vemos uma histórica de capacitismo dentro da Universidade, que é muito difícil romper. Vamos para a questão indígena. A gente comemora quando tem dois doutorandos que entram indígenas. É tudo ainda muito recente.
É preciso um processo de consolidação dessa política para mudar a cara da pós-graduação, e mudar a cara da Universidade. Porque essas pessoas que entram têm um papel importantíssimo, inclusive de entender os problemas dos fenômenos educacionais. Nós vamos nos dedicar a outros objetivos, que os pesquisadores brancos do alto dos seus privilégios nem conseguem compreender como questões importantes de investigação.
Abertura do evento ocorreu no auditório Eulálio Chaves na Ufam. Foto: Gláucio Rodrigues/ ANPEd
ADUA: Você comentou que a o país tem produção científica muito consolidada na área da educação, mas que é uma área pouco ouvida. E nós estamos acompanhando uma série de pesquisas e notícias sobre “fuga dos cérebros” no Brasil. O que você pode comentar sobre isso?
Geovana: A ANPEd não tem uma pesquisa sobre esse tema específico na área na educação, mas existem pesquisadores se debruçando sobre o tema. O que acontece no Brasil é que a carreira do pesquisador aqui não existe. Ah eu sou pesquisadora. Vou trabalhar onde? Se você não entrar numa universidade você não tem onde trabalhar com pesquisa. São pouquíssimos institutos de pesquisa ou grupos de pesquisa que trabalham só com isso no Brasil. O restante é carreira universitária. Tem muitas problemáticas aí.
É claro que durante os governos Temer e Bolsonaro tivemos uma fuga grande em função dos cortes de recursos, do desmantelamento de grupos de pesquisa atuantes e tudo mais, mas ao mesmo tempo eu acho que tudo isso tem que servir também para a gente analisar a própria questão da carreira do pesquisador. Como é que a gente reconfigura essa carreira dentro da lógica da produção científica e tudo mais.
O que está acontecendo hoje no Brasil é um pouco disso. Em algumas áreas, por exemplo, o pesquisador começa a fazer internacionalização, o aluno vai para fora do país e quando ele se forma, ele vai analisar: Poxa, mas eu vou voltar para o Brasil com essa minha formação, onde é que eu vou trabalhar? Como é que eu vou continuar fazendo isso que eu faço aqui?. Enquanto lá, com grupos de pesquisas já consolidados, seria possível dar continuidade na pesquisa.
Nós tivemos uma mesa muito bacana sobre isso na reunião da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], em que os colegas falaram sobre esse tema. A própria presidente da Capes falou o quanto é preciso mudar essa lógica também, de entender que se o pesquisador está fora, como é que a gente pode trazer ele para qualificar os processos dentro do Brasil. E aí redimensionar essa questão da “fuga de cérebros”.
A nossa expectativa é que a situação melhore, na medida em que a gente pare de ter cortes. Mas não é o caso, pois estamos vendo notícia de que houve um novo corte. Isso tudo gera muita instabilidade, gera um processo de desgaste muito grande dos grupos que só vivem do financiamento público.
ADUA: Como você descreve o sentimento de “amar-zonizar-se” aqui nesses dias do encontro?
Geovana: Estar aqui é uma experiência que nos modifica, nos leva a entender o Brasil de maneira diferente. Porque tudo que a gente fala retoricamente que é o continental, que a floresta é isso ou aquilo, ganha outra dimensão quando estamos aqui.
Existe uma outra dimensão quando a gente ouve as pessoas do território, quando a gente percebe que o modo de viver e as alternativas aqui construídas são diferentes, os tempos da Amazônia são outros, as problemáticas são outras também. É uma experiência muito transformadora.
O processo de amazonizar está se dando, e de maneira diferente em cada pessoa, por tudo o que estamos vivendo aqui, desde a comida, os sabores, os cheiros, as roupas, os contatos com as pessoas e as aprendizagens que a gente vai colhendo nesse caminho. É uma experiência muito positiva.
* Entrevista feita por Sue Anne Cursino durante a ANPEd (Ascom/ADUA)
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