Crédito: ANDES-SN
Sue Anne Cursino/ Ascom ADUA
A intensificação da desassistência na área de saúde, mortalidade na infância, assassinatos e violências ligadas ao patrimônio indígena é denunciada no relatório intitulado “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados de 2022”, publicado no dia 26 de julho deste ano pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O Amazonas é um dos estados com maior registro de violações, principalmente na Terra Indígena (TI) Yanomami.
O documento de quase 300 páginas registra uma visão completa das múltiplas formas de violências enfrentadas pelas populações indígenas em todo o território nacional.
As informações foram organizadas a partir de registros do Cimi, depoimentos de indígenas, veículos de comunicação e fontes públicas, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e secretarias estaduais de saúde.
Os dados coletados passaram a integrar a plataforma Cartografia de Ataques Contra Indígena (Caci), mapa digital que mapeia assassinatos de indígenas no Brasil desde 1985.
O integrante da Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi) e do Cimi, Francisco Loebens, afirma que, nos últimos quatro anos, a política adotada por Jair Bolsonaro foi orientada para o extermínio dos povos indígenas. “O governo federal que tem como atribuição constitucional assegurar os direitos territoriais dos povos indígenas e zelar por todos os seus bens (materiais e imateriais) assumiu publicamente, através do presidente da República, que não cumpriria o disposto na Constituição se negando a demarcar terras indígenas e estimulando os invasores dessas terras para promover o seu esbulho. A consequência foi a explosão da violência contra os povos indígenas que, compreendendo a extensão dos danos que essa política anti-indígena lhes causaria, foram o setor da sociedade que, nesse período de violentos ataques aos direitos humanos, mais se mobilizou e resistiu contra o autoritarismo e contra as arbitrariedades governamentais”, enfatizou.
Mais do que números
Só em 2022 foram registrados 1.334 casos de violência contra o patrimônio dos povos indígenas, tendo a extração de recursos naturais como madeira, minérios, caça e pesca ilegais, e invasões ligadas à grilagem de terras entre os principais tipos de danos.
Foram registrados ainda 867 casos de omissão e morosidade na regularização de terras; 158 conflitos relativos a direitos territoriais e 308 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio.
Os casos de violência contra pessoas indígenas também tiveram aumento, totalizando 416, número que pode ser maior considerando a dificuldade de coletar dados nas regiões isoladas e de difícil acesso, onde há invasiva atuação de fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores.
Os dados do relatório denunciam que houve 29 casos de abuso de poder; 27 de ameaças de morte; 60 casos de ameaças várias; 180 assassinatos; 17 homicídios culposos; 17 lesões corporais dolosas; 38 casos de racismo e discriminação étnico-cultural; 28 tentativas de assassinatos e 20 registros de violência sexual. Os estados de Roraima, Amazonas e Mato Grosso do Sul concentraram quase dois terços (65%) dos 795 homicídios de indígenas registrados entre 2019 e 2022.
Mortalidade infantil
Os dados coletados afirmam que de 2019 a 2022 a mortalidade infantil entre os povos indígenas chegou a 3.552 casos, sendo 1.014 só no Amazonas e 607 em Roraima.
Com base nas causas de óbitos informadas pela Sesai, foram identificadas que algumas mortes ocorreram por causas evitáveis, ou seja, por doenças que poderiam ter sido controladas por meio de ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento.
Só em 2022, destaca-se a ocorrência de 72 casos de falta de assistência; 39 de ausência de suporte educacional; 87 de negligência na área de saúde e 5 casos de propagação de consumo de álcool e outras drogas. Além disso, 40 mortes foram atribuídas à carência de cuidados médicos adequados, somando um total de 243 casos ao longo do ano. Foi ainda registrado um total de 115 casos de suicídio entre indígenas.
Reuters/Amanda Perobell
Sem o básico
A falta de medicamentos, profissionais, transporte e infraestrutura necessária para o atendimento deixa marcas profundas, como a ausência de Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSIs), falhas no abastecimento de água potável e saneamento básico, que representam uma série de desassistências que afeta diretamente a qualidade de vida das comunidades.
A região Norte do país enfrenta um impacto cada vez mais sério devido à contaminação das águas causada pelo mercúrio proveniente de garimpos ilegais.
Em janeiro de 2023, cenas da situação crítica dos Yanomami em Roraima tiveram repercussão na mídia mundial. O atual governo chegou a instalar “Emergência em Saúde Pública de importância Nacional”, em decorrência de desassistência à população Yanomami, que tem cerca de 30 mil pessoas. “A situação extrema era exemplificada pelo brutal relato de que crianças chegavam ‘ao ponto de expelir vermes pela boca’”, afirma trecho do relatório.
No Amazonas, dentre os diversos casos citados, estão: os dos indígenas do município de Beruri (AM), que em fevereiro de 2022 reivindicaram melhorias no Departamento de Saúde Indígena (Dsei) para atender os 2.500 indígenas divididos em 22 aldeias e 6 povos da região; atraso na vacinação contra covid-19 para adolescentes de 12 a 17 anos em Atalaia do Norte; denúncia dos indígenas Madijá (em Eirunepé) sobre falta de água potável e saneamento básico; surto de covid-19 entre indígenas de recente contato, como os Korubo, no Vale do Javari, no município de Atalaia do Norte, que tiveram cerca de 70% da população afetada.
A negligência de barreiras sanitárias em TI, ocupadas por povos indígenas em isolamento voluntário podem gerar grande perigo, sendo esses os grupos mais afetados pela política deliberada de omissão e desproteção.
Foi registrado que no ano passado ocorreram invasões e prejuízos ao patrimônio em TIs que abrigam um total de 60 grupos de povos indígenas em isolamento.
São povos que vivem o risco de genocídio, por serem “invisíveis” ao estado, uma vez que, dos 117 grupos de indígenas em isolamento voluntário registrados pelo Cimi, 86 não são reconhecidos pela Funai.
“Não demarcar e viabilizar o acesso de exploradores às terras demarcadas foram eixos motores da antipolítica indigenista, que desterritorializou e fragilizou a aplicação do direito, gerando um ambiente de profunda insegurança e violências sem precedentes na história recente do Brasil”, afirmaram a pesquisadora Lucia Helena Rangel e o pesquisador Roberto Antonio Liebgott, que assinam a introdução do relatório.
Memória
Além de artigos que buscam aprofundar a reflexão acerca do “garimpo e genocídio na Terra Indígena Yanomami”; “indigenismo em 2022”; e “negação de direitos indígenas na justiça criminal brasileira”, a edição do relatório do Cimi apresenta o texto “Comissão Nacional Indígena da Verdade, uma emergência civilizatória”, escrito pelo pesquisador Marcelo Zelic, que traça um panorama das ideias deste importante lutador da causa indígena, falecido neste ano, que atuou como Membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória, deixando como importante legado a inclusão da temática indígena na pauta da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O relatório enfatiza que 2022 encerrou um período governamental com violações e crescimento da violência contra indígenas, agravado pelo desmonte das políticas públicas para essas comunidades e enfraquecimento das entidades de proteção de seus territórios.
Cada vez mais urgente é a demanda por efetivas medidas para condições dignas da vida dos povos indígenas, que garantam a sua preservação cultural e direitos humanos.
Francisco Loebens avalia que “o Relatório do Cimi retrata a extensão da tragédia sofrida pelos povos indígenas por ação e omissão do governo Bolsonaro. Os números que revelam essa violência são assustadores. Constata-se que a política adotada foi orientada para o extermínio dos povos indígenas através de um ataque feroz a seus direitos territoriais, de incentivo a invasão de suas terras, para a dilapidação do seu patrimônio, de negligência na atenção à saúde e educação indígenas, além de fomentar o preconceito e a discriminação na sociedade brasileira em relação a esses povos”.
Dentre os desafios apontados na avaliação de Loebens, estão: a demarcação e desintrusão de todas as terras indígenas; a ameaça do Marco Temporal que está sendo julgado pelo STF e é objeto de um projeto de lei no Congresso Nacional; a reconstrução das políticas públicas; o assédio de empresas às comunidades indígenas para a assinatura de contratos relativos ao mercado de carbono que ameaça a autonomia dos povos sobre os seus territórios, desrespeitando a consulta prévia, a necessidade de fazer chegar até os territórios informações de qualidade sobre as políticas que afetam os povos indígenas, entre outros.
Diante destes números, retoma-se trecho da carta da Famddi, entidade a qual a ADUA integra e que foi criada em 2018, motivada pela projeção de um cenário de violações dos direitos indígenas agravadas no desgoverno Bolsonaro, que não demarcou nenhuma TI nos últimos três anos.
“Nestes tempos de esperança, mas também de permanência da violência institucionalizada e dos ataques a todas as formas de vida, insistimos em viver e defender a vida!”.
Crédito: Daisy Melo/ Ascom ADUA
4 votos contra e 2 a favor no STF: Indígenas mantêm mobilização contra Marco Temporal
Retomado nos dias 30 e 31 de agosto, o julgamento do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) foi acompanhado em Brasília por mais de 600 indígenas que se reuniram para protestar contra a pauta anti-índigena, que afirma que só pode haver a demarcação de terras se indígenas estivessem habitando o local em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil.
A tese do Marco Temporal recebeu votos contrários dos ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso.
Já os votos favoráveis à tese anti-índigena foram dos ministros André Mendonça e Nunes Marques.
O julgamento foi iniciado em 2021 e trata, no mérito, de uma ação possessória (Recurso Extraordinário n.º 1.017.365) envolvendo a Terra Indígena Xokleng Ibirama Laklaño, dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e o estado de Santa Catarina. A decisão terá status de repercussão geral, ou seja, servirá de diretriz para todos os processos de demarcação de terras indígenas no país.
O resultado também poderá ser sobreposto ao que for decidido no Legislativo, já que a bancada ruralista tenta aprovar o Marco Temporal por meio do Projeto de Lei 490/2007 (já votado na Câmara) e que tramita no Senado como PL 2.903/2023.
O coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna, fez um balanço positivo sobre a retomada do julgamento e afirmou que irão continuar com cantos, rezas e o movimento indígena em mobilização pelos direitos dos povos indígenas sobre seus territórios.
O ANDES-SN esteve presente nas manifestações em Brasília e diz não ao Marco Temporal, reforçando o posicionamento em defesa dos direitos dos povos indígenas do Brasil.
A previsão é de que a pauta volte ao debate no dia 20 de setembro. Ainda faltam votar as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, e os ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
Três Anos do Massacre do Rio Abacaxis: haverá justiça e reparação?
Nos dias 2, 3 e 4 de agosto, organizações e entidades atuantes em defesa dos povos indígenas realizaram um seminário com objetivo de discutir a impunidade após o episódio de violência policial ocorrido no dia 03 de agosto de 2020, que espalhou terror e vitimou quatro ribeirinhos e dois indígenas do povo Munduruku, na região do rio Abacaxis, próxima à Nova Olinda do Norte (AM).
O encontro ocorreu no auditório “Rio Solimões” e no miniauditório da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC), no setor Norte do campus da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em Manaus. A ADUA esteve presente na abertura da atividade, sendo representada pelo 1º tesoureiro, professor Tomzé Costa.
No evento, pela primeira vez, a Polícia Federal (PF) admitiu, publicamente, que o caso envolve a investigação de 130 policiais.
Um representante do povo Munduruku destacou que as violações de direitos e invasões de território persistem, incluindo a vigilância com o uso de drones no Território Indígena. “Apareceram alguns drones e não sabemos a quem pertence ou por que estão ali, se é do governo ou da PF. Quando olhamos para cima, já pensamos que vão nos matar, que vamos morrer. Estão monitorando meu povo em que sentido: de ajudar ou massacrar?”, denunciou.
Para preservar a segurança dos(as) moradores(as) das comunidades e das famílias das vítimas, parte do seminário foi realizada sem a presença da imprensa, e foram tomados cuidados para garantir o anonimato daqueles(as) que compartilharam relatos e denúncias.
O integrante da Casa da Cultura do Urubuí (Cacui) e professor da Ufam, Maiká Schwade, explica que o encontro foi um momento em que um conjunto de entidades se reuniu pelo terceiro ano para marcar a data do episódio de ataque contra vidas indígenas, que ficou conhecido como Massacre do Rio Abacaxis, e buscar justiça. “Isso se mostra cada vez mais necessário porque estamos há três anos desde que o conflito aconteceu, e após sucessivas trocas de delegados da Polícia Federal, agora tem um que está se dedicando ao assunto e apresentou os primeiros indiciamentos. Mas ficou muito claro que o Estado brasileiro tem dificuldade de dar uma resposta legal para esses crimes que foram cometidos”.
As famílias das vítimas ficaram expostas a um clima de medo e ameaças. “Essas pessoas estão sem qualquer proteção e vivem ainda sob a sombra desse massacre, com medo. Algumas tiveram que se mudar efetivamente, então isso mudou completamente a dinâmica das comunidades, sejam ribeirinhas, Maraguá ou Munduruku. Alguns crimes foram cometidos poucos meses após o massacre, e isso preocupa bastante, não só a comunidade, mas representantes das entidades que olham para o caso”, enfatiza Maiká.
Em manifesto divulgado em maio deste ano, o Coletivo Pelos Povos do Abacaxis reiteraram a busca por justiça e proteção das vítimas e testemunhas dos crimes.
Entre os organizadores do seminário estiveram a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi); o grupo de pesquisa Dabukuri - Planejamento e Gestão do Território na Amazônia; o Programa de Pós-Graduação em Geografia da Ufam (PPGEOG); a Comissão Pastoral da Terra Regional Amazonas (CPT Regional Amazonas); o Conselho Indigenista Missionário (Cimi Regional Norte I); a Casa da Cultura do Urubuí (Cacui) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
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