O número de mortes de crianças com menos de 5 anos de idade por causas evitáveis aumentou 29% no território Yanomami durante o governo de Jair Bolsonaro (2019 a 2022), em relação aos quatro anos anteriores. Dados obtidos com exclusividade pelas repórteres, Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum, do portal de notícias Sumaúma apontam que 570 meninos e meninas desse povo indígena morreram nos últimos quatro anos por doenças que têm tratamento. A estimativa é que a realidade seja ainda pior, considerando que houve um “apagão estatístico” no território, durante o governo de extrema direita.
O veículo também recebeu uma série de fotografias em que aparecem crianças e idosos desnutridos e com os ossos aparentes e que comprovam a situação de abandono da saúde indígena. As imagens foram feitas por indígenas e profissionais de saúde que conseguiram vencer a barreira do garimpo ilegal e chegaram a Terra Indígena Yanomami.
“Não estamos conseguindo contar os corpos”, afirma uma das oito pessoas ouvidas pela reportagem. Todas relatam um cenário de catástrofe dentro da maior TI demarcada do país. No território entre Roraima e Amazonas, onde vivem quase 30 mil Yanomami, a fome se alastrou. Fragilizados, velhos e crianças sucumbem a doenças que têm tratamento, mas que quase não chega até eles por descaso do governo.
O desmonte da saúde indígena no governo Bolsonaro levou várias aldeias ao colapso sanitário. Com pouco acesso à saúde e medicamentos em falta, crianças e idosos morrem de desnutrição ou por doenças como vermes, pneumonia e diarreia. “Tá tendo muito garimpeiro, muita malária. Pega malária, não aguenta fazer roça”, afirma o líder indígena, Mateus Sanöma.
Os Sanöma, um grupo da etnia Yanomami, vive na região de Auaris, no limite do Brasil com a Venezuela, onde o garimpo atua livremente dos dois lados da fronteira. A insegurança alimentar sempre foi uma questão crítica na região. Localizada nas terras altas do território, há menos oferta de comida. Com o garimpo e a explosão da malária, o que era um problema se tornou um caos.
As estatísticas oficiais deveriam, mas não alcançam a tragédia humanitária vivida pela etnia e relatada pelas pessoas que habitam e trabalham no território. Os dados reais, segundo elas, são muito maiores. Muitas das mortes que ocorrem nas aldeias sequer são informadas aos serviços médicos. Em algumas das regiões mais afetadas pelo garimpo, as equipes de saúde foram expulsas e não conseguem prestar atendimento ou contabilizar os mortos.
Vários homens da etnia migram para o garimpo do outro lado da fronteira, na Venezuela, deixando as mulheres sozinhas para cuidar das crianças, fazer roça e pescar numa região escassa, desequilibrando o modo de vida dos indígenas. Como só os homens caçam, mais uma fonte de proteínas passou a faltar. “Na minha comunidade, todos estão morrendo de fome. Já morreram 30 Sanöma e vão morrer mais. Estão morrendo rápido. Não quero que morram todos. Precisamos de apoio para não morrer meu povo todo”, desespera-se Mateus Sanöma.
Entre 2021 e 2022, a região de Auaris, onde vivem 896 famílias, teve 2.868 casos de malária. Dados obtidos pelo portal Sumaúma apontam que, apenas no ano passado, seis crianças com menos de 1 ano de idade morreram por causas que seriam evitáveis se houvesse acesso a serviços de saúde ou medicamentos. Na região, 6 de cada 10 crianças menores de 5 anos de idade apresentam déficit nutricional, ou seja, têm peso considerado inadequado para a idade, a maior parte delas já em desnutrição severa.
Na Maloca Paapiu, outra região do território Yanomami, acontece o mesmo: 6 de cada 10 crianças dessa faixa etária estão desnutridas. É de lá que chegou à reportagem uma lista feita à mão com as mortes ocorridas entre dezembro e os primeiros dias de janeiro: foram quatro crianças, filhas de Catiusa, Beadriz, Geovana e Briscila. E ainda outros quatro idosos. “Oito [dos] meus parentes morreram”, diz o recado.
“Na semana em que eu estava lá foram três óbitos de crianças, todas por pneumonia. Outra se salvou, foi removida [para o hospital de Boa Vista]”, contou um profissional que atuou na região do Xitei em dezembro para trabalhar pelo Censo. Em 2022, os dados mostram que 13 crianças do Xitei com menos de 5 anos de idade morreram por causas que seriam tratáveis: seis delas por pneumonia, quatro por diarreia e duas por desnutrição.
Na região do Homoxi, o posto de saúde foi tomado pelos criminosos, virou depósito de combustível e foi incendiado pelos garimpeiros em dezembro, como forma de retaliação à uma operação da Polícia Federal (PF) em combate à atividade ilegal. Segundo as estatísticas, nenhuma criança está desnutrida ali. Como não há acompanhamento das equipes de saúde, também não há dados. As crianças que passam fome, adoecem e com frequência morrem foram apagadas do sistema.
O helicóptero usado para a remoção de doentes em áreas remotas ficou quebrado entre 24 de dezembro e 4 de janeiro. Neste período, segundo as lideranças e os profissionais ouvidos pela reportagem do Sumaúma, ao menos oito pessoas morreram – quatro na região do Surucucu e quatro entre os Sanöma. Mas, nas estatísticas oficiais constam apenas três crianças mortas entre 24 e 27 de dezembro. Cinco mortes estão em apagão estatístico.
“Em Koraimatiu acabei de receber a notícia que o helicóptero ajudou, mas ficaram quatro corpos”, informou um profissional de saúde no início de janeiro, logo após a volta do helicóptero. A comunidade não conseguia sequer fazer a cerimônia de cremação dos mortos, porque não haviam pessoas saudáveis suficientes. “Em Porapë, morreram quatro pessoas. Soube agora que morreu mais uma criança. O tuxaua [liderança] morreu também. Precisamos alcançar aqueles que estão mais distantes das pistas de pouso”, contou.
Na semana passada, o governo Lula, que herdou os anos de descaso do governo Bolsonaro, montou às pressas uma força-tarefa, com especialistas de Brasília e Boa Vista, para avaliar a tragédia na TI Yanomami. Desde o início desta semana, eles visitam as regiões mais afetadas para montar um plano de ação e tentar evitar mais mortes. Uma sala de situação funcionará para assessorar as equipes de saúde. Eles também deverão avaliar em que medida os dados que constam no sistema do Ministério da Saúde correspondem à realidade.
“A alimentação que os polos de saúde têm para dar aos Yanomami doentes é arroz e só, nada nutritivo”, contou outro profissional, que esteve diversas vezes no território no ano passado. “Não tinha nem remédio, nem novalgina, não chegava nada. As crianças estavam soltando vermes pela boca. Vai ter que começar do zero, tudo de novo. Os Yanomami foram jogados à própria sorte.”
Outro trabalhador do Censo, que atuou no território por décadas e voltou no ano passado, conta que a “situação é desoladora”. “Os profissionais de saúde trabalham em condições subumanas. Postos de saúde com goteiras, sem água nem luz. O profissional tem que andar às vezes mais de 300 metros para buscar água no balde. Faltam medicamentos básicos”, relata.
“O pessoal passando fome demais, todo mundo muito magro. Até para o trabalho do IBGE estava difícil. Quando tinha que pernoitar, na hora da janta, a gente tinha levado comida, mas a aldeia inteira morrendo de fome ficava em volta da equipe, que dividia o pouco que tinha levado. Não dá para esperar mais.”
* O Sumaúma pediu autorização às lideranças da etnia para publicar as fotos utilizadas na reportagem
Fonte: Sumaúma com edição da ADUA
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