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Estudante transgênero da Ufam reivindica uso de nome social



Estudante do 7º período de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Diana Brasilis sabia desde o Ensino Médio que era uma aluna diferente das colegas de classe, mas não com menos direitos. Entretanto, foi no Ensino Superior que ela passou a enfrentar as maiores dificuldades de sua vida estudantil, entre elas lidar com os conflitos dentro e fora de sala de aula por ser transgênero. Três anos após ter garantido sua vaga na graduação, ela aposta num futuro promissor, caso a instituição adote a inclusão do nome social (usado por transexuais e travestis) nos registros acadêmicos e funcionais da universidade.

O pedido para regulamentação do uso do nome social na Ufam foi feito há pouco mais de um mês pela estudante e pelo Departamento de Filosofia (DF), de onde a questão emergiu, à Câmara de Ensino de Graduação (CEG). A solicitação contempla a alteração em diários de disciplinas, fichas e cadastros, formulários, listas de presença, divulgação de notas, processos seletivos e resultados de editais, “tanto os impressos quanto os emitidos eletronicamente pelo sistema oficial de registro e controle acadêmico”, inclusive garantindo ao estudante e ao servidor o direito de ser chamado pelo nome social, sem menção ao nome civil, durante os eventos oficiais realizados na instituição.

Em um documento de onze páginas, o DF apresenta as motivações e justificativas da solicitação, cujo objetivo é “promover os direitos civis de membros da comunidade LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros] que pertencem à Ufam, bem como compatibilizar a legislação administrativa da instituição” às normas já existentes.

No texto, o Departamento afirma que Diana “enfrenta em seu cotidiano acadêmico uma série de obstáculos, e até mesmo constrangimentos”, em virtude de não ter sua identidade de gênero reconhecida oficialmente pela instituição. O caso da estudante, segundo o documento, representa um conflito real de leis. “Por um lado, temos o direito civil de uso do nome social assegurado pelo Amazonas. Por outro lado, temos a ausência de regulação desse direito por parte da legislação administrativa da Ufam”, diz trecho da solicitação.

“É um direito de todo indivíduo se identificar e ser identificado pelos outros da maneira que prefere e se entende”, afirmou a professora do DF Verrah Chamma, que, juntamente com outros dois docentes, integra a comissão responsável por promover o debate da questão e pela elaboração do documento encaminhado à CEG. “Entendo a angustia dela e de todo transgênero ao se identificar e se apresentar de uma maneira, mas não ter esse direito reconhecido. Por isso, sentimos necessidade de fazer algo mais que simplesmente concordar em chamá-la de Diana”, disse Chamma, acrescentando que a medida pode beneficiar outros estudantes.

O professor do DF José Belizário, que também integra a comissão, reforçou que “esse direito humano fundamental ainda não está assegurado na universidade”. Para ele, assegurar legalmente o uso do nome social na Ufam é o primeiro passo. “É importante também que se faça um trabalho de sensibilização dos segmentos universitários sobre a existência desse direito da comunidade transgênero, pois não pode nem deve ser negado”, continuou.

Um desses direitos é ter reconhecida a sua identidade de gênero. Diana é portadora de uma Cédula de Nome Social, emitida em outubro de 2014, pela Secretaria de Segurança do Estado do Amazonas (Seseg-AM), válida em todo o território estadual. Pouco depois da expedição da cédula, Diana realizou as atividades da disciplina “Estágio Supervisionado II” durante um mês na Escola Estadual Ruy Araújo, onde afirma não ter enfrentado dificuldades. “Consegui meu nome social antes de ir para essa escola e, como ela é uma unidade estadual, eles respeitam a minha identidade”.

Mudanças

A estudante conta como teve o 1º contato com o tema. “Essa questão apareceu totalmente nova na minha vida aos 16 ou 17 anos, quando me deparei com os textos que falavam sobre transexualidade e percebi que tinham a ver comigo”, afirma Diana, acrescentando que começou a fazer leituras sobre o assunto para entendimento das mudanças pelas quais passava entre o 1º e o 2º anos do Ensino Médio. Foi nesse período que ela descobriu a possibilidade de fazer uso do nome social, a partir de uma reportagem da Folha Universal sobre o caso de crianças transgêneros. “Na época eu fiquei muito interessada no assunto e até me vi naquela matéria”, lembra.

Diana garantiu sua vaga na universidade por meio do Processo Seletivo Contínuo (PSC), em 2012. Com a nova fase, ela começaria não somente o curso de Filosofia, mas o processo de mudança na sua identidade. “Lembro que no fim do Ensino Médio eu não suportava mais aquela mentira que estava vivendo. Comecei a tratar dessa questão com alguns amigos, inclusive que começaria todo o processo hormonal. A minha essência é ser garota, indiferente da minha condição biológica e da minha anatomia”, ressalta.

Ela começou o tratamento em outubro de 2013, quando já estava no 2º ano de Filosofia, mas foi somente há um ano que Diana resolveu exteriorizar a mudança, quando deixou os cabelos crescerem e passou a usar trajes femininos. Segundo a estudante, os colegas de classe encararam seu novo aspecto com certa naturalidade. “Foi normal. Já estava até rolando boatos que eu era hermafrodita”, diz, em tom já mais descontraído.

Receptividade que ela nem sempre encontra quando deixa a sala de aula, no Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), e passa por outras unidades acadêmicas. “Não consigo distinguir se é olhar de surpresa, de indignação, de preconceito, eles simplesmente estão olhando”, afirma. Certa vez, conta Diana, um amigo dela que estuda na Faculdade de Tecnologia mostrou à estudante uma foto de uma mensagem provocativa deixada para ela no banheiro masculino. “Na época, eu reagi tranquila. Depois que eu passei a ver nisso um problema”, afirmou.

A propósito, usar o banheiro costuma, para Diana, ser constrangedor. “É sempre um choque. Eu vou ao banheiro quando eu acho que não tem ninguém. E ainda hoje eu fico assustada, em virtude da reação de algumas meninas. Elas fazem cara estranha ou riem da minha voz quando estou conversando com alguma amiga”, disse, afirmando nunca ir desacompanhada. Questionada sobre como se sente nessas circunstâncias, a graduanda de Filosofia não hesita em falar de seu desapontamento. “Isso me incomoda bastante. Quando estou num estado de angústia, me sinto um lixo”, lamenta.

A estudante do 7º período de Filosofia, Sarah Tavares de Lima, amiga de Diana desde o Ensino Médio, confirma as dificuldades enfrentadas pela colega de turma e diz que a questão precisa ser discutida na universidade. “Eu conheci a Diana no 1º ano do Ensino Médio, mas nós não éramos da mesma turma. Só no ano seguinte, quando passamos a estudar juntas, é que a gente se aproximou”, conta Sarah, acrescentando que a afinidade com a colega de classe evoluiu a ponto de as duas terem decidido, juntas, pelo mesmo curso de graduação. “A Ufam precisa discutir esse assunto”, afirmou.

De acordo com o pró-reitor de Ensino de Graduação, professor Dr. Lucídio Rocha, a questão foi encaminhada ao Departamento de Legislação e Normas (DLN), que deve emitir até o fim deste mês um parecer sobre o caso. “Penso que essa é uma questão importante e que precisa ser debatida”, disse Lucídio, acrescentando que apesar de a Ufam não ter uma norma interna sobre o assunto, a instituição não está impedida de assegurar esse direito. “É uma situação nova”, completou.

A expectativa é que, independente da manifestação técnica emitida pelo DLN, o assunto entre em pauta na próxima reunião, dia 13 de março, da Câmara de Ensino de Graduação (CEG), da qual Lucídio também é presidente. De lá, o debate sobre o assunto deve seguir para o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe), instância deliberativa que tem, entre outras competências, fixar normas complementares às do Regimento Geral da instituição.

Análise

Na avaliação do psicólogo e ex-coordenador do GT de Diversidade Sexual do Conselho Regional de Psicologia (CRP) Andrews Duque, uma possível regulamentação do tema na universidade pode garantir não só direitos, mas espaço a um público muitas vezes considerado ‘invisível’. “A escola, frizo com ênfase, ainda é um não-lugar para muitas delas, inclusive a universidade”, afirmou, categórico. Para ele, ainda é latente o despreparo de alguns profissionais para lidar com essa comunidade. “Falta capacitação, realização de oficinas, de palestras e de pesquisas que venham dar visibilidade aos transgêneros”.

Duque ressalta que “faz parte da dignidade humana que as pessoas sejam chamadas pelo nome do qual se sentem pertencentes” e que esteja ligado à construção de sua subjetividade. Ele está realizando trabalho de mestrado provisoriamente intitulado de “Tornar-se travesti: o desenvolvimento de travestis na cidade de Manaus” e pretende compreender o universo e as concepções da comunidade transgênero da capital, considerando os aspectos psico-social, biológico, influências culturais, valores e principais dificuldades enfrentadas.

Apesar de não ter encerrado a pesquisa, prevista para ser apresentada em julho deste ano, o psicólogo antecipa que entre esses obstáculos está a dificuldade para manter os estudos ou ainda conseguir uma oportunidade no mercado de trabalho. “Elas sofrem preconceitos nessas tentativas, por apresentarem uma identidade visual performática”, disse. Das sete transgêneros que entrevistou para o trabalho apenas duas têm nível superior completo.

Para a estudante de Psicologia Ane Caroline Nunes, que também pesquisa a participação dos transgêneros no contexto escolar, por meio doPrograma Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic),reconhecer o nome social é fortalecer a identidade de uma pessoa. Ela afirma ainda que o preconceito contra a comunidade transgêneros é maior.

Desenvolvendo o trabalho “Significado da escolarização para travestis”, Caroline fez duras críticas a respeito da falta de dados sobre a presença de travestis nas escolas públicas. “É preciso entender os motivos da evasão escolar: a violência, o preconceito, o contexto da família e do bairro, de vunerabilidade. Tudo isso devia ser motivo de preocupação”.

Inquietação que, muitas vezes, sobra aos parentes e amigos de transgêneros. “Foi um impacto [para a família], mas a gente sabe que tem que respeitar. Por isso, eu espero que a comunidade aceite a pessoa como ela quer ser aceita”, disse a graduanda de Design Suzana Araújo, prima da estudante.

Regulamentação


O DF entende que o “acolhimento e institucionalização, por parte da Ufam, do nome social para os alunos e alunas transgêneros não só é compatível com os direitos humanos de igualdade e liberdade”, mas também sinaliza um movimento da instituição para reconhecer e valorizar as diferenças que existem e estão amparadas na legislação.

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República emitiu um Termo de Cooperação Técnica fazendo jus ao Decreto nº 7037, de dezembro de 2009, com objetivo de promover o enfrentamento da discriminação de identidade de gênero e orientação sexual nas instituições federais. Nesse sentido, algumas mudanças já estão ocorrendo, para garantia de direitos da comunidade LGBT.

O Ministério da Educação (MEC), por exemplo, atualizou o formulário de inscrição e autorizou, por exemplo, o uso do Nome Social na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2014. Com a mudança de postura e na tentativa de promover o bem estar social, o MEC assegurou ainda ao candidato e à candidata transgênero o direito de escolher o ambiente sanitário a ser utilizado no dia da prova: banheiro masculino ou feminino. “Será no mínimo incongruente que esse mesmo candidato aluno não tenha o mesmo direito assegurado em seu cotidiano acadêmico na universidade em que ele se matricula”, já a partir do 1º semestre letivo de 2015, continua o documento elaborado pelo DF.

Em âmbito local, a Portaria Nº 002/2014, da Secretaria de Justiça do Estado do Amazonas (Sejus) que determina, em seu artigo 1º, “a inclusão do nome social de travestis e transexuais em fichas de cadastros, formulários, instrumentais, prontuários e documentos congêneres do atendimento prestado aos usuários de todas as subsecretarias e unidades” do Estado. A cédula de nome social pode ser usada oficialmente como documento civil de identificação.

Nessa mesma linha de afirmação dos direitos civis para essa população, o Conselho Estadual de Educação (CEE/AM), a partir da resolução nº 33/2013, aprovada no dia 9 de abril de 2013, determina também às unidades que compõem a rede estadual de ensino a inclusão do nome social nos registros escolares internos.

No entendimento do DF, o transgênero que deixa o Ensino Médio e não recebe tratamento, no mínimo, semelhante no Ensino Superior, “passa por uma lamentável regressão no que diz respeito ao usufruto de seus direitos civis básicos”. Situação que atualmente não ocorre na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). O Conselho Universitário daquela instituição aprovou, em dezembro do ano passado, a regulamentação do uso do nome social em sua rotina acadêmica, acatando proposta submetida pelo Diretório Central de Estudantes (DCE), em abril de 2014.

Entre as Instituições Federais de Ensino (IFE) também há um movimento em favor da promoção e do reconhecimento de direitos civis da comunidade LGBT. No caso específico da regulamentação do uso do nome social, essa medida já foi adotada pelas Universidades Federais do Amapá, a pioneira, em outubro de 2009, de Santa Catarina, em abril de 2012, do Rio Grande do Norte, em dezembro do mesmo ano, do Pampa/RS, em agosto de 2013, e a de Goiás, em maio do ano passado.

Enquanto o debate sobre o assunto começa na Ufam, Diana pretende terminar o curso de Filosofia e seguir a pós-graduação na área das Artes, mas não sem antes lutar por uma conquista que não é somente do pensamento filosófico e humanista, mas de boa parte das sociedades contemporâneas em que a igualdade se pauta pelo respeito às diferenças.

Fonte: Adua



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