Sem buscar respostas concretas e fáceis, livro reúne série de artigos de diversos personagens que buscam entender o que aconteceu com o Brasil desde a série de protestos em junho de 2013
Movimento. De acordo com o dicionário da Porto Editora: ato de mover ou de se mover; mudança de posição no espaço em função do tempo; deslocação; mudança de lugar ou de posição; evolução de ideia; agitação política.
Não se pode decretar facilmente para onde um movimento pode levar um corpo, mas é certo que ele não continua no mesmo lugar. É toda essa movimentação que o livro “O Brasil em movimento“, lançado pela editora Rocco, procura entender.
Com a participação de personalidades da luta política brasileira como o deputado estadual do PSOL do Rio de Janeiro Marcelo Freixo, o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stedile, o cantor e compositor Gilberto Gil entre outros, a coletânea de artigos busca analisar a natureza dos protestos que tomaram as ruas em 2013 contra o aumento das passagens do transporte público, algo que vem acontecendo novamente neste mês de janeiro em diversas capitais do Brasil.
Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Raquel Rolnik, junho de 2013 nada mais foi do que o encontro de diversas pautas que já estavam nas ruas desde, pelo menos, o começo dos anos 2000.
“A demanda do Passe Livre não é uma luta nova, ela estão nas ruas desde 2003 e já haviam gerado uma agitação política com, por exemplo, a revolta do busão em Salvador naquele ano. As ruas foram um ponto de encontro dessas demandas. Foi a fagulha que incendiou a pradaria“, explicou.
A importância dos movimentos
“Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar“, citava o pernambucano Chico Science em 1994. O movimento e a organização também são essenciais para a vida humana em sociedade, explica o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que também participa do livro.
“Os seres humanos, os animais selvagens, os micróbios todos nós nos comportamos de tal maneira que somos reconhecidos pelos outros. Para isso, temos que respeitar a nossa própria natureza, que é sempre viver num movimento mútuo e numeroso. O que é uma infecção se não um movimento em massa de organismos que buscam viver de alguma forma?”, disse.
E nenhum cenário é mais propício para essa massa de seres humanos em construção do que as cidades. Voltando ao músico pernambucano, na música “A cidade“ ele traça o que nós temos em comum com a urbe: a cidade não para/ a cidade só cresce, mas, logo depois, profetiza qual é o resultado desse crescimento na lógica do capitalismo em que o de cima sobe/ e o de baixo desce.
Berço das maiores mobilizações populares durante toda a história brasileira, foi nas ruas que milhões pediram diretas já, o impeachment de Fernando Collor e muitas outras demandas da sociedade. A novidade de 2013 foi que a cidade também foi alvo dos protestos e sua relação com os cidadão foi novamente questionada.
Para o arquiteto, as cidades são inquietantes por natureza e essa sua vocação é que faz com que movimentos aconteçam nelas o tempo todo. “Mais uma vez ficou ressaltada a imagem das cidades como sendo o que o ser humano é. Como ela não é algo que existe fechado na natureza, ela nada mais é do que resultado da nossa mobilização para as criar. Se houvesse um motivo para as cidades existirem, seria para conversarmos“, analisou.
A catraca como símbolo do atraso
A falta de direito à cidade é a principal luta dos movimentos pela gratuidade no transporte público, como o Movimento Passe Livre. Toda essa revolta pode ser ilustrada por um objeto: a catraca.
Dezenas delas foram queimadas pelas ruas para denunciar que o transporte público nas grandes cidades e, por consequência, o direito de circular por ela, estava sendo tratado como mercadoria por empresas e governos.
“Se há um monumento à ‘desarte’, algo monstrengo, mas que representa tudo isso que estamos falando é a catraca brasileira. Uma coisa feia, fora de época e símbolo de um país que em algumas coisas é muito atrasado“, criticou Lúcio Gregori, ex-secretário municipal de transportes de São Paulo.
Gregori foi o responsável pelo projeto do passe livre na capital paulista durante o governo de Luíza Erundina, entre 1989 e 1992. Ele foi apresentado para a câmara dos vereadores mas não foi aprovado.
Lúcio, porém, explicou que a prefeitura conseguiu estatizar 100% do sistema de ônibus da capital, tirando assim as concessionárias que visavam lucros no transporte e podendo controlar o preço da tarifa dependendo de quanto subsídio ela poderia se responsabilizar.
“O Brasil é o sétimo maior PIB do mundo, mas investe em transporte como os últimos. Madri e Paris chegam a dar subsídios de 55% até 60% no transporte público. Por aqui, o máximo que chegamos é 20%. Quando fui secretário estatizamos o sistema de ônibus. Com isso, a prefeitura poderia deixar o preço do transporte de acordo com o subsídio que quisesse ter“, explicou Lúcio.
A história não acabou em junho de 2013
Logo depois da série de protestos, que avançaram também em 2014 durante a realização da Copa do Mundo, muitos se perguntaram: e agora? Qual será o futuro das mobilizações? Os jovens continuarão nas ruas? O modo de fazer política no país mudará drasticamente? Qual serão os resultados práticos disso?
Muitos acreditam que se trata de uma incoerência a eleição que sucedeu a maior revolta popular desde o impeachment de Fernando Collor elegeu o Congresso mais conservador desde a redemocratização.
Raquel, no entanto, analisa o processo como em aberto e acredita que as narrativas sobre o que aconteceu nas ruas ainda precisa ser contada. Ela, porém, pede para que se tome cuidado com respostas fáceis.
“A narrativa mais fácil acaba sendo a contra a corrupção. Acontece que ela posta dessa forma acaba mais despolitizando do que criando algo positivo. Ela esconde pontos centrais, por exemplo, como o Estado brasileiro foi montado para que poucos tirem o lucro da terra, das cidades e dos serviços públicos. Ela mostra os 10% da propina mas não mostra que os outros 90% estão indo para 1% dos mais ricos“, ponderou.
As respostas para as demandas das ruas preocupam todos os países que passaram por insurgências, por diversos motivos, no último período. A primavera árabe buscava mais democracia em países totalitários, mas gerou um governo teocrático no Egito. Na Europa em crise econômica, a resposta foi governos de direita em diversos países.
Sem se preocupar com o fato de haver mais perguntas do que respostas, a opinião de muitos analistas é de que a onda de protestos não acabou e que respostas definitivas não existem e nem são desejadas.
“Evidentemente as questões colocadas são tão amplas que nenhuma resposta imediata vai ser adequada. Mesmo se ela acontecer, tem um enorme perigo dela ser totalitária, uma espécie de líder milagroso que irá nos salvar que evidentemente jamais vai poder dar conta disso”, disse Raquel Ronik.
Lúcio também destaca que a estrutura de poder brasileira não consegue entender um movimento não hierarquizado e horizontal. “Quem foi pra rua são jovens que certamente vão passar ao largo das governabilidades, dos equilíbrios econômicos, das limitações orçamentárias e tudo o que resulta naquilo que todo mundo já conhece“, acredita.
Calma e olho aberto
O otimismo, porém, não significa que a parte da sociedade que está nas ruas deve se desorganizar e nem deixar de ficar atenta ao que acontece no cenário político nacional. Raquel afirma que não existe o “fim da história“ em junho de 2013 e sugere calma e olho aberto para as dificuldades que virão pela frente.
“Tem muito chão pela frente e muita coisa pra ser pensada e elaborada. Não vamos nos deixar enganar pelas interpretações fáceis daquilo que está acontecendo com a gente, com o Brasil e com o mundo, temos que ficar muito atento pra permanentemente tentar entender mas também mobilizados para continuar lutando", finalizou.
Imagem: Rafael Neddermeyer - Fotos Públicas
Fonte: Brasil de Fato |