Proibida pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) de manter e utilizar animais vertebrados em aulas práticas e projetos de pesquisa desde o segundo semestre de 2013, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) desenvolveu de maneira ilegal estudos com experimentação animal, por pelo menos um ano, segundo a direção do Biotério Central da universidade. De acordo com a diretora do órgão suplementar, subordinado à administração superior, professora doutora Geane Lourenço, até agosto deste ano, alguns pesquisadores mantinham-se resistentes à determinação de não utilizar animais vertebrados em pesquisas ou aulas práticas. Outros o faziam por falta de conhecimento. Em caso de descumprimento, o pagamento de multa e a suspensão de financiamentos estão entre as penalidades.
“A instituição está impossibilitada de realizar experimentação animal com qualquer vertebrado e esse foi um dos problemas que enfrentamos, porque a instituição pensava que era apenas com os roedores e alguns pesquisadores continuaram a fazer pesquisas com peixes e com os animais da fazenda, até um mês atrás”, disse Geane.
Regulamentado desde 2008 pela Lei nº 11.794, também conhecida como Lei Arouca, o uso de animais em projetos de pesquisa, a partir da legislação específica, passou a depender do credenciamento das instituições para sua manutenção. O prazo de cinco anos dado aos institutos e universidades de todo o país, entre elas a Ufam, para a realização das adequações preconizadas pela lei expirou em agosto de 2013, sem que a instituição conseguisse se cadastrar e solucionar os problemas infraestruturais como infiltrações, climatização improvisada e falta de espaço existente em seu Biotério Central.
Responsável por fiscalizar a realização de atividades envolvendo animais dentro da instituição, o Comitê de Ética no Uso de Animais (CEUA), criado de forma emergencial em junho deste ano, através da Portaria nº 1595, enfrenta dificuldades para realizar a fiscalização. Como medida para tentar divulgar o impedimento e frear os pesquisadores que continuavam fazendo testes em animais, cópias da carta de indeferimento do Concea e da intimação que informava a intenção do Conselho de adotar sanções foram enviadas aos diretores de unidades para que fiscalizassem seus pesquisadores.
Impedidos de publicar os resultados das pesquisas, caso divulguem que os experimentos ocorreram dentro da Ufam, alguns pesquisadores, segundo Geane, compram os animais, realizam os experimentos na universidade e depois declaram que o estudo foi desenvolvido em outra instituição na qual também atuam. “Se ele tiver um vínculo, por exemplo, de colaboração com outra instituição e ela estiver fornecendo os animais, ele pode dizer que fez o experimento lá, mas fez aqui. E isso dribla a legislação”, informou, acrescentando que isso é inidôneo.
Segundo a diretora do Biotério Central, a desorganização da Ufam foi um dos fatores que contribuiu para a suspensão do uso de animais, afetando diretamente, em média, cem pesquisadores da instituição e os cursos de Medicina, Biotecnologia, Farmácia, Enfermagem e Odontologia, causando prejuízos às aulas práticas de 300 alunos por semestre.
“A Ufam não se organizou. Somente o diretor do órgão fez o credenciamento e na mesma época foi transferido para outra universidade, deixando o Biotério acéfalo. Não tinha ninguém que coordenasse. Uma professora foi posta de forma interina e nesse meio tempo o credenciamento voltou com várias contestações, mas infelizmente, por uma deficiência da universidade, o processo ficou parado na Direx [Diretoria Executiva]”, afirmou a professora, que há menos de um ano assumiu o desafio de dar qualidade ao Biotério.
A diretora esclarece que apesar da tentativa recente de credenciamento do Biotério junto ao Concea, a instituição depende ainda de que todos os demais locais que mantêm animais como, por exemplo, a fazenda experimental, o macacário, a granja e os biotérios da Faculdade de Farmácia, do curso de Psicologia, e de peixes se credenciem para haver o desbloqueio do CNPJ da Ufam. No final de setembro, o Concea desbloqueou o CNPJ da Ufam, mas manteve a suspensão do uso de animais em aulas e pesquisas até que uma inspeção seja realizada na universidade.
Após 15 anos como pesquisadora no Instituto Butantan, Geane conta que mesmo “respirando experimentação animal” precisou abrir mão da realização de pesquisas, neste ano, devido a proibição do uso de animais. “Eu parei tudo. Acabei os Pibics de 2013 e não enviei nenhum projeto 2014, porque não tem como”, afirmou.
A docente destaca, porém, que antes mesmo do impedimento do Concea, o Biotério Central da Ufam já não atendia adequadamente as necessidades dos pesquisadores. “Desde que eu cheguei aqui, não consegui realizar o que eu queria por uma incapacidade dos animais em responder ao que eu necessitava. Os resultados que eu tinha serviam para um aluno de iniciação científica, mas não como resultado de pesquisa. E isso me deixou muito preocupada. Não posso fazer pesquisa científica amadora para o resto da vida. É preciso conscientizar o pesquisador de que o que ele está fazendo não é pesquisa. É uma enganação”, desabafou Geane.
Esvaziado desde que o Conselho indeferiu o credenciamento da Ufam e o CEUA, formado por professores da própria universidade, suspendeu todas as atividade com animais vertebrados, o Biotério, ao longo dos últimos 15 anos, teve há disposição, de acordo com a diretora, recursos para a realização de reformas, por duas vezes, mas ambos foram devolvidos por dificuldades em encontrar uma construtora com expertise em construções do tipo.
“A instituição não está parada, mas as coisas acontecem de forma muito morosa por falta de conhecimento. Nós estamos trabalhando na planta do novo Biotério, há cinco anos. Era uma conversa de surdo e mudo. Eu dizia o que precisava e eles não sabiam como fazer. Atualmente, com o auxílio de uma empresa com expertise na construção de biotérios pelo país todo, nós conseguimos terminar a planta”, disse.
Sem aulas práticas
À frente da diretoria do Biotério Central durante oito meses em 2013, a professora doutora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e que também compõe a Comissão de Gestão do Biotério, Cinthya Iamille de Oliveira afirma que o primeiro recurso, disponibilizado para o local, no valor de R$ 500 mil era suficiente, à época, para tornar o Biotério da Ufam um dos melhores da América Latina. No caso da segunda verba, o valor na ordem de R$ 700 mil, via Finep, segundo a docente, não é capaz de contemplar a implantação das salas de criação, manutenção e de experimentação existentes na planta do novo biotério, mas a prorrogação de prazo já está na terceira tentativa.
Professora da disciplina de farmacologia em cursos como Medicina, Farmácia, Enfermagem, Odontologia e Biotecnologia, Cinthya afirma que no curso de biotecnologia, que tem mais da metade da carga horária prática, as aulas vêm ocorrendo de maneira prático-teórica, causando uma perda grande de conteúdo aos estudantes.
“Eu mostro a metodologia, simulo os resultados em sala de aula e trabalho em cima disso com os alunos, porque não tenho como mostrar a manipulação do animal num pano ou brinquedo. Só na disciplina de farmacologia são cerca de 500 alunos afetados, por período. São em média nove disciplinas penalizadas, entre elas, a fisiologia”, afirmou a docente, que além desses cursos atende também estudantes de Psicologia, Educação Física e Ciências Biológicas.
Além da perda de conteúdo prático relacionada ao aprendizado da técnica correta de manusear, administrar e inserir corretamente a agulha nos animais durante a graduação, a professora destaca o impacto negativo na relação estudante x pesquisa. Com os alunos migrando na maioria das vezes para o campo da pesquisa, a oferta deficitária dos princípios básicos gera prejuízo ao discente que ingressa no mestrado, por exemplo, segundo Oliveira. “Ele vai ter que passar por um processo que teria que ter aprendido na graduação. Será necessário um ou dois meses dessa parte inicial prática de manipulação de animal e de administração para ele tentar evoluir”, frisou.
Segundo a professora, a disciplina de farmacologia, por exemplo, dependendo do curso é ministrada aos alunos entre o quarto e o sexto períodos. No curso de Medicina, a grade curricular divide o conteúdo em farmacologia geral e tópicos avançados 1 e 2, este último repassado aos acadêmicos concomitantemente com a Clínica, por estarem avançados no curso. Na Clínica Cirúrgica, de acordo com Cinthya, existem disciplinas que demandam do aluno saber administrar medicamentos e anestesiar.
“Como é que eles vão anestesiar um animal ou um paciente se eles não aprenderam com a gente anteriormente? Eles estão aprendendo lá a suturar em pano, o que é bem diferente da resistência do tecido. É uma limitação que eles estão tendo que superar as vezes no internato com o ser humano mesmo e tendo que aprender na hora”, afirmou a docente.
Professor de Imunologia Médica no ICB e em cursos de pós-graduação, o doutor Antônio Luiz Boechat afirma que para quem desenvolve pesquisas na área, que utiliza em 99,9% dos casos a experimentação com animais, é inviável a suspensão. Orientador de pelo menos dois alunos de mestrado e doutorado que desenvolvem projeto financiado pelo CNPq e que depende do uso de animais em laboratório, Boechat afirma que caso não encontre uma solução precisará contatar o Conselho para justificar a mudança no projeto ou devolver o recurso de R$ 28 mil.
“Esses alunos estão com o projeto parado desde janeiro deste ano. Nós estamos fazendo outras coisas, esperando que se resolva. Vamos pensar que eu tenho uma aluna que entrou em março no mestrado pegando esse projeto e tem dois anos para terminar. Ela entrou com uma proposta de aprender uma técnica de experimentação animal envolvendo imunologia e reumatologia. Com a proibição do uso de animais a formação dela fica prejudicada nesse aspecto porque ela está fazendo mestrado em imunologia e vai sair sem colocar a mão num bicho”, criticou.
O docente afirma ainda que devido o fechamento do Biotério Central, os alunos da Ufam estão mais atrasados em comparação aos estudantes de grandes universidades brasileiras como a Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, que além de possibilitar ao acadêmico treinar o manuseio de animais e a aplicação de medicamentos por vias específicas, incentiva o teste em diversos modelos experimentais.
De acordo com o docente, apesar dos prejuízos, o Biotério Central antes mesmo da suspensão não funcionava dentro do padrão de um local destinado a experimentação animal. “Não adianta ter um biotério, ter um animal e a qualidade do experimento ser horrível. Que garantia você tem de que aquilo ali realmente é o que você está querendo observar?”, afirmou.
Para a professora doutora Rosany Piccolotto, ex-gestora do Biotério entre os anos 2000 e 2004, a Ufam, apesar de estar crescendo através da construção de novos prédios, nunca teve o órgão suplementar entre suas prioridades.
“O recurso de R$ 500 mil que recebemos voltou após dois anos de briga para as obras do novo biotério iniciar. Quando começaram a construção do Centro de Ciências do Ambiente (CCA) eu pensava que já era o nosso biotério porque no projeto ele seria naquele local, mas para a minha surpresa já era outra coisa”, afirmou.
Orientadora de projetos de pesquisa na área de fisiologia e com três projetos próprios parados, além dos desenvolvidos por alunos, Piccolotto conta que vem buscando soluções para reverter os prejuízos causados pela proibição. A docente afirma que até mesmo os projetos que puderam ser acelerados e que alcançaram resultados não puderam ser feitos em novos grupos de animais para que a pesquisa tivesse andamento.
“Nesse caso era um projeto de Pibic, mas eu tinha uma aluna que terminou o doutorado agora e que precisou deixar de fazer alguns grupos de animais vivos devido a falta dos ratos. Fizemos alguns grupos com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o trabalho dela ficou prejudicado porque utilizou ratos de lugares diferentes e isso influencia porque o local onde o rato é desenvolvido influencia no metabolismo dele”, explicou.
Procurada para comentar o caso, a Ufam informou através de sua Diretoria Executiva (Direx) que apenas através da abertura de um processo administrativo, “via Protocolo Geral da Reitoria” os questionamentos efetuados pela reportagem do Jornal da Adua poderiam ser respondidos. A imposição feita pela diretoria através do despacho datado de 10 de setembro deste ano contraria um preceito básico do jornalismo, mostrar os dois lados da notícia. Como embasamento para não responder ao pedido de informações, a Direx utilizou a Portaria nº 2.239/2014.
Fonte: ADUA
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Obs: Manchete da edição nº 60 - agosto e setembro - do Jornal da ADUA, fechada no dia 29 de setembro de 2014. |