Durante quatro meses de 2013, o professor Dr. Wallice Duncan, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), teve que conciliar as atividades de ensino, pesquisa e extensão com um trabalho que jamais pensou que um dia fosse realizar na instituição: o de “mestre de obras”. Depois de tanta insistência no pedido por um espaço adequado para o trabalho, Duncan, com apoio de estudantes, decidiu ocupar uma área abandonada na própria unidade acadêmica, onde funcionava uma lanchonete, e arregaçar as mangas. Literalmente.
Foram vários sábados, domingos, feriados e até mesmo turnos à noite para dar conta da obra e preparar o ambiente para continuar realizando as atividades de ensino e pesquisa na universidade. Junto com os discentes, preparou a massa para reboco, pintou as paredes da sala, instalou a pia, fez reparos na rede hidráulica e elétrica, e até o transporte da mobília e dos equipamentos de pesquisa para o “novo” espaço.
A atitude do docente pode ser encarada com certa reprovação pelos colegas que não estariam dispostos a fazer o mesmo. Pode ainda mostrar o grau de comprometimento e empenho do professor com a atividade fim da instituição. E mais que isso: revela a faceta mais cruel da precarização do ensino superior no Brasil, onde faltam condições de trabalho e valorização profissional, e sobram problemas.
Até que ponto é preciso ir para prestar um serviço público de qualidade e garantir o direito constitucional à educação? O que mais precisarão fazer os professores federais para manter o tripé da universidade, enquanto o governo alardeia o aumento das vagas nas universidades, sem oferecer condições?
Professora da Ufam há 24 anos, a bióloga Lúcia Makarem desenvolve suas atividades no Laboratório de Embriologia, num espaço onde ministra as aulas, realiza atividades práticas, faz atendimento aos alunos e outros colegas de trabalho, tudo num só lugar. Na sala, há apenas duas fileiras de carteiras e os estudantes não podem retirá-las do lugar, para não comprometer ainda mais o uso do reduzido espaço.
Com o aumento no número de vagas, a professora se desdobra para preparar uma aula de qualidade e conseguir reunir a turma naquele espaço. “Eu acabo fazendo uma aula teórico-prática aqui dentro. Só que com esse aumento absurdo de demanda, agora eu tenho de 30 a 35 alunos”, disse a professora.
Antes do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído pelo governo em 2007 e que possibilitou a ampliação da oferta de vagas, a docente tinha, no máximo, 25 alunos por turma. “Depois do Reuni, não houve ampliação do espaço. É tudo engatilhado!”, reclamou.
Makarem, que atualmente ministra disciplina para turmas dos cursos de Ciências Biológicas, Farmácia e Medicina, afirma que essa situação tem comprometido a formação dos estudantes e ainda a qualidade do trabalho dos docentes. “Sem falar que essa é uma disciplina que por vários anos eu tenho lutado para que ela tenha uma carga horária prática”, disse a especialista em Morfologia Humana, acrescentando que isso não ocorre por falta de condições objetivas para manuseio de feto. Atualmente, só usa material anatômico feito de produtos descartáveis.
Em outras ocasiões, a docente ministra aula em uma sala em frente ao Laboratório, onde a situação não é mais favorável. Nas janelas, na falta de basculante, a solução “provisória” é o papelão; e nos vidros, papel alumínio – item que serve para embalar os alimentos. Questionada se o sistema de refrigeração da sala funciona, a docente ironiza: “Jura que quer ouvir?”. A professora, que também foi aluna na instituição, lamenta que pouca coisa tenha mudado nos últimos anos.
“Nunca tivemos tantos alunos em torno de um microscópio”, ressalta o professor José Fernando Marques, chefe do Departamento de Morfologia – um dos quatro do ICB, revelando que não é somente a questão infraestrutural do Instituto que preocupa. A escassez de equipamentos também reflete diretamente na execução das atividades e na qualidade do ensino. “A dinâmica na sala não dá [com essas condições]. Não tem logística pra isso!”, afirma.
Marques ministra, nesse período, aulas de ‘Histologia’ para duas turmas de Medicina, totalizando cerca de 60 alunos. “Chefia não tira você de sala de aula. Continuo com ensino, pesquisa e extensão normalmente”, disse. Para o chefe, a realidade está longe da situação ideal, mas ele explica como é possível atingir o objetivo das aulas. “O aluno é diferenciado. Apesar das dificuldades, ele fica após as aulas, às vezes no horário de almoço, para continuar usando o equipamento. Se não fosse isso...”, afirmou.
Ele relata que o compromisso de muitos docentes com a universidade extrapola questões relativas aos deveres do servidor. “Você acaba tirando recurso de projeto ou mesmo do próprio bolso para comprar um produto de melhor qualidade e continuar o trabalho nas salas de aula”, afirmou. O docente citou o caso de uma professora que possui um saco com adaptadores para auxiliar no uso dos instrumentos nos laboratórios. “As tomadas não são compatíveis com os equipamentos. Ou o professor compra o adaptador ou não pode usá-los”, lamenta o chefe, professor da Ufam há duas décadas.
Mais recente na docência universitária, em relação aos professores citados anteriormente, a docente Maria Inês Braga também enfrenta condições precárias na execução das atividades diárias. “Quando participei da seleção em 2009, encontrei as mesmas condições da época em que fui aluna: a mesma bancada, a mesma tela de projeção, o mesmo tudo. Nada tinha mudado”, disse. A rememoração fez outra docente que acompanhava
a conversa soltar trecho de um clássico de Ronnie Von: “a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim”, lembrando a música de abertura do programa comandado por Carlos Alberto de Nóbrega.
Inês conta, inclusive, que já teve uma crise alérgica durante as atividades didáticas no Laboratório de Histologia, onde ocorrem as aulas práticas. “Foi uma crise como eu nunca tive na vida, em virtude da presença de muito ácaro no ambiente”, lembra. No local, segundo ela, já foram encontrados até escorpiões. A afirmação soou como presságio: na semana seguinte à entrevista, o Laboratório foi interditado por conta da presença do mesmo invertebrado.
A falta de equipamentos também está na lista das dificuldades enfrentadas pela professora. “Tenho uma turma com pelo menos 50 alunos de Medicina e não há sequer 15 microscópios funcionando, sendo que só cinco são novos. Ficam três, quatro estudantes por equipamento, enquanto o número de discentes só aumenta”, afirmou. Para realizar as atividades, a docente informa que seriam necessários 30 microscópios e 20 lupas, outro equipamento básico. No momento, só há disponíveis cinco lupas.
O que o ICB tem em excesso, na opinião da professora, é o comprometimento do corpo docente com a instituição e, principalmente, com os estudantes. “O que há aqui é a boa vontade dos professores, que não se escondem atrás dos problemas. Nós queremos conseguir melhores condições, mais próximas do ideal, mas em compensação não usamos isso como desculpa para não desenvolvermos as nossas atividades”, concluiu.
Laboratório sucateado
O sucateamento das condições de trabalho e ensino também é latente no Laboratório de Anatomia, que recebe alunos do ciclo básico de todos os cursos das áreas de saúde e biológicas. “O espaço é um grande problema, pois os laboratórios não comportam o tamanho inflado das turmas. Temos um mobiliário extremamente precário e peças em oxidação, que oferecem riscos a alunos e professores. Além disso, o tanque de armazenamento de cadáveres está com problema no elevador, podendo romper-se e machucar a quem o estiver manipulando”, enumerou o professor Jarbas Pereira, citando que um incidente dessa natureza já ocorreu com um técnico.
No local, os estudantes fazem higienização em uma pia sem acabamento sanitário. E como não há mobília adequada para a colocação de material pessoal, as mochilas ficam dispostas sobre as mesas onde deveriam estar os corpos a serem estudados. Some-se a isso o fato de as peças humanas estarem armazenadas em recipientes tomados por fungos.
De acordo com Pereira, os usuários do Laboratório estão expostos ainda às condições de insalubridade próprias deste tipo de ambiente, por conta do uso de produtos tóxicos como o formol durante as atividades. “A mitigação é complicada porque a estrutura do laboratório não é adequada, mas improvisada”, afirmou. Além disso, segundo Jarbas, a universidade também não tem cedido na quantidade adequada os equipamentos de proteção individual (EPIs) solicitados, como máscaras, óculos, luvas de procedimento e até jalecos descartáveis.
“Todos os anos fazemos a requisição para o semestre, mas nunca vem na quantidade solicitada”, disse, alegando que recebeu até o momento cinco caixas de luvas, quantidade suficiente para uma semana. “Os professores costumam comprar o restante”. “Também não recebemos o formol em quantidade suficiente para manter as peças. Ou seja, corremos o risco de perder peças valiosíssimas, pois não se consegue cadáver com facilidade”, acrescentou. Conforme Jarbas, o formol – utilizado na fixação e conservação do cadáver – está a ponto de descarte.
O professor disse acreditar que essa situação pode mudar com a entrega de um novo prédio específico para a área de anatomia. “Hoje nós temos um espaço adequado num laboratório novo cujo prédio está pronto há quase dois anos, mas que ainda não foi entregue”, disse. Entretanto, com o atraso na obra e a perspectiva de aumento nas vagas, ele teme que nem o novo espaço seja suficiente para atender a demanda.
Todos os docentes ouvidos pela reportagem depositam esperança na melhoria “temporária” das condições, com a entrega dos dois novos blocos do ICB. “A nossa luta agora é para que o novo espaço seja entregue, para que os nossos problemas sejam momentaneamente resolvidos”, afirmou Jarbas. As informações contidas na placa da obra dão conta de que o prazo da construção encerrou em 6 de abril de 2014.
Em nota enviada por meio da Assessoria de Comunicação, a Administração Superior da Ufam informa que o prazo da obra foi dilatado “a interesse da Universidade e conforme previsão contratual, tanto devido a peculiaridades no processo de transporte dos materiais biológicos envolvidos na desocupação dos blocos, quanto pela necessidade de ajustes técnicos no projeto, alterando o cronograma inicial”. A previsão é que o 1º bloco seja entregue em agosto deste ano; e o segundo, em novembro.
Os docentes também temem que os problemas voltem a se repetir em breve, pois o projeto de ampliação do Instituto é anterior ao Reuni, quando o ICB tinha outra realidade e, com a instituição do programa do governo, em 2007, e sua repactuação, em 2013, a demanda tende a aumentar.
De acordo com dados da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação (Proeg), há 603 graduandos matriculados no 1º semestre letivo de 2014, somente nos cursos oferecidos pelo ICB. O quantitativo é 42% maior em comparação ao 2º semestre de 2007, época em que o Reuni foi instituído. Naquela ocasião não havia o curso de Biotecnologia. Os números deste ano não incluem ainda os estudantes dos períodos iniciais de Medicina, Farmácia, Odontologia, Enfermagem, Educação Física, Fisioterapia, Psicologia, Zootecnia, Engenharia de Pesca, Agronomia e Engenharia Florestal que também estudam na unidade acadêmica. Pelas contas dos docentes, são mais de 1.000 alunos atendidos pelo ICB.
Às vésperas do processo eleitoral para escolha da nova diretoria do ICB, os candidatos já sabem o que terão pela frente.
Fonte: Adua |