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  07/07/2023 - por Valerio Arcary





 

 

Não deitar foguetes antes da festa.

Não cantar vitória antes do tempo.

Não há mão que agarre o tempo.

Provérbios populares portugueses

 

 

1. A decisão do Tribunal Superior eleitoral (TSE) foi uma vitória democrática, ainda que tardia, e merece ser celebrada. Uma conquista porque estabelece uma legitimação jurídica-institucional para a punição dos incontáveis episódios de abuso de poder. Bolsonaro não foi somente o mais catastrófico presidente, desde o fim da ditadura. Bolsonaro é um monstro criminoso. A esquerda não pode deixar que a corrente bolsonarista seja “normalizada”. A condenação de Bolsonaro deve ser um ponto de apoio, e um primeiro passo na luta para impor uma derrota histórica aos fascistas. A extrema-direita preserva grande apoio na massa da burguesia e uma audiência de massas gigante na sociedade brasileira, porque é majoritária nas camadas médias e divide a classe trabalhadora. O Brasil ainda está fraturado. Essa luta é dificílima e, não nos enganemos, ainda exigirá enormes mobilizações de massas. O combate ao fascismo tem uma dimensão ideológica e a luta de ideias é insubstituível. Mas força se combate com força. O alívio emocional que se respira nas ruas, locais de trabalho, e até nas famílias não deve nos iludir. O tempo não para. Os combates decisivos ainda estão na nossa frente, não ficaram para trás.

 

2. Teria sido muito melhor se Bolsonaro tivesse sido afastado da presidência por um processo de impeachment. Essencialmente, por três grandes razões: (a) porque a corrente neofascista teria sido enfraquecida antes das eleições de 2022, e o desenlace das eleições para governadores, senadores, deputados federais e estaduais poderia ter sido, pelo menos, um pouco menos ruim; (b) porque teríamos sido, talvez, parcialmente, poupados dos desastres sociais, ambientais, gerenciais e outros que se estenderam até o final de 2022; (c) porque teria sido evitado a disputa de “terceiro turno” que passou pelo bloqueio de estradas, concentrações-acampamentos golpistas na frente de quartéis pelo país afora, culminando com a semi-insurreição de 8 de janeiro. As lições que devemos aprender deste fracasso são amargas, porém, mais importantes que as lições que decorrem da vitória eleitoral de Lula.

 

3. Trata-se de um triunfo parcial no marco de uma luta estratégica contra o perigo neofascista. Não sabemos qual será o desenlace dos futuros processos em que Bolsonaro será julgado, e continua incerto se será condenado ou não à prisão. Durante décadas o fascismo foi uma corrente, politicamente, residual, por razões históricas. Mas a marginalidade da extrema-direita era desigual de país para país. No Brasil sempre foi mais influente que na Argentina, por exemplo. Foi, tristemente, assim, porque a ditadura acabou sem que o governo Figueiredo tivesse sido derrubado. E, também, em função da transição pelo “alto” negociada pelo MDB de Tancredo Neves, que deixou intacto o aparelho militar-policial de vinte anos da ditadura. Esse desfecho deu sobrevida ao “malufismo”, herdeiro do partido da ditadura, por uma década. Mas o fascismo do século XXI é uma corrente com um horroroso peso de massas no Brasil e crescente influência em grande parte do mundo. Nesse contexto, a inelegibilidade do “imbrochável” é insuficiente porque: (a) autoriza Bolsonaro a permanecer ativo como articulador da extrema-direita para as eleições municipais de 2024 e presidenciais de 2026, com capacidade de transferência de prestígio e indicação de um sucessor(a); (b) a corrente neofascista que apoiou as ameaças golpistas durante os quatro anos de mandato preserva posições políticas centrais no Estado brasileiro, a começar pelos três governos estaduais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, além de uma bancada estimada em, pelo menos, 100 deputados federais eleitos, centenas de estaduais e, em escala nacional, alguns milhares de prefeitos, além de uma impunidade de agitação e propaganda em algumas empresas privadas de comunicação social, associadas a obscuras campanhas nas redes sociais pela internet; (c) permanece pendente a tarefa incontornável de julgamento, condenação e prisão dos associados de Bolsonaro na oficialidade das Forças Armadas e nas Polícias estaduais, militares e civis;

 

4. Aqueles que, até em círculos da esquerda, argumentaram contra a condenação de Bolsonaro pelo TSE perderam a bússola política. A subestimação do perigo representado por Bolsonaro é imperdoável. A extravagante ideia de que o maior problema, no Brasil de 2023, seria o excesso de poder dos Tribunais Superiores e não a impunidade da corrente neofascista, depois de tudo que aconteceu no país desde o golpe institucional de 2016, é insustentável. O argumento de que não devemos apoiar a ofensiva da Justiça contra Bolsonaro porque se estabeleceria um precedente jurídico para, no futuro, legitimar a repressão contra a esquerda radical é de uma miopia política incorrigível. O lugar da esquerda deve ser na primeira linha da luta pela repressão impiedosa contra Bolsonaro e a corrente neofascista. Não há razão alguma para reservas e pudores diante da iniciativa dos Tribunais de colocarem os fascistas nos bancos dos réus. Ao contrário, o desafio diante da esquerda é não transferir a responsabilidade, unicamente, para a ação da Justiça. Mais do que nunca é necessária uma campanha de massas que se apoie nos movimentos sociais sob a bandeira Bolsonaro na prisão. A luta política tem uma dimensão simbólica central. A condenação de Bolsonaro teria um impacto subjetivo imensurável na consciência de milhões de pessoas.

 

5. O Brasil dos treze anos de governos de conciliação de classes liderados pelo PT não pode ser explicado por uma analogia com a Rússia dos governos provisórios liderados por Kerensky e os mencheviques entre fevereiro e outubro de 1917, só que em câmara lenta. Nunca foi uma antessala de uma revolução bolchevique. O perigo real e imediato foi a vitória de um Kornilov. Mesmo o doutrinarismo de inspiração marxista tem que ter limites e um mínimo de sentido das proporções. Ficou demonstrado à exaustão que o regime da Nova República, o presidencialismo de coalizão, a forma que assumiu a democracia liberal, foi desafiado, frontalmente, pela ameaça golpista encabeçada pela extrema direita liderada pelos neofascistas, não por uma revolução operária e popular. Nunca estivemos, nem sequer, remotamente, próximos de uma situação revolucionária. O que existiu de progressivo no impulso inicial de Junho de 2013, se exauriu, vertiginosamente, em algumas semanas ou, em uma leitura mais otimista, em poucos meses. A luta de classes no Brasil teve um desenlace terrível desde os inícios de 2015. Derrotas sucessivas abriram desde 2016 uma situação reacionária, de máxima defensiva, ou seja, uma relação social de forças, dramaticamente, desfavorável. A eleição de Bolsonaro em 2018 colocou o perigo de uma derrota histórica. A vitória eleitoral de Lula nos garantiu um tempo para respirar. Mas o fascismo continua vivo. Não conseguiremos derrotá-lo sem despertar nas massas populares, nos movimentos sindicais e estudantis, feministas e negros, LGBTs e indígenas, ambientais e da cultura uma fúria, uma ira, uma vontade de ir até o fim.

 

* Arcary é professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles “Ninguém disse que seria fácil” (2022), pela editora Boitempo.

 

**Texto publicado originalmente no dia 04 de julho de 2023 no site www.esquerdaonline.com.br



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